(Alexandra Lucas Coelho)
Abbas é um traidor. Os regimes árabes são ditaduras corruptas. A resistência só acaba se a ocupação acabar. Israel não tem futuro como Estado judaico. É o que pensa o Hamas, nas palavras de um líder.
Entrevista
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza
Os mais conhecidos nomes do Hamas em Gaza estão na sombra desde a guerra. Um dos líderes que fala é o deputado Yahya Al Abadsa.
Esteve preso cinco anos nas cadeias israelitas, doutorou-se em Educação e deu aulas na Universidade Islâmica até ser eleito para o parlamento. Aos 51 anos, pai de sete filhos, mora num modesto apartamento em Khan Yunis, Sul de Gaza, onde os pais se refugiaram quando Israel foi criado.
Quinta-feira à tarde não havia bandeiras verde do Hamas na rua, mas viam-se duas bandeiras vermelhas da PFLP. Como faltava a electricidade, era preciso subir às escuras uns degraus toscos de cimento. Lá em cima, na sala de visitas, o habitual mapa da Palestina antes da declaração de Israel.
Dois dos filhos, um adolescente e uma menina, seguiram em silêncio a entrevista. A jornalista não estava de cabeça coberta. Al Abadsa manteve-se sempre cortês.
Gaza ainda está em cessar-fogo?
Não há cessar-fogo verdadeiro. O cessar-fogo é de acordo com o ponto de vista israelita, o que lhes dá o direito de agir contra os palestinianos quando querem. Cessar-fogo tem que ter dois significados. Primeiro, parar o fogo e depois parar o cerco, que é um crime. Desde que o cessar-fogo foi declarado, os israelitas mataram três palestinianos e feriram outros mesmo antes de algum fogo os ter atingido. Isto leva a que não haja compromisso de cessar-fogo por parte da resistência a não ser que Israel esteja comprometido.
Foram lançados dois “rockets” contra Israel.
Sei pelos media que eram das Brigadas Al Aqsa [ligadas à Fatah].
O Hamas não tem nada a ver com eles?
Se o Hamas lança “rockets”, assume.
Qual é o objectivo dos “rockets”?
Estamos sob ocupação e isso dá-nos o direito de nos defendermos e lutarmos pelos nossos direitos. A nossa liderança na OLP decidiu parar a violência de forma a conseguir a paz, e durante 16 anos foi um falhanço, portanto, diga-me: o que fazer?
Israel joga com o tempo para conseguir os seus objectivos, que é criar um Estado judaico em toda a Palestina e expulsar os palestinianos.
Há pessoas em Gaza que perguntam para que serviram os “rockets”. Se o fim é combater a ocupação, que ganharam com eles?
A questão é ilógica. Se paz significa que os ocupantes não nos dêem os nossos direitos, é uma perda de tempo. E se assim fosse nenhum povo ocupado poderia lutar pela liberdade. Por exemplo, a Argélia, nos dias da luta com a França, perdeu num dia 45 mil mártires.
Gente aqui em Gaza perguntou a chorar se valeu a pena perder 1300 vidas, ter 5500 feridos, 20 mil casas destruídas.
Lembro-lhe que os vietnamitas perderam três milhões de combatentes contra 20 mil soldados americanos. Os argelinos perderam entre 1,5 e dois milhões contra 20 mil soldados franceses.
O problema não são os rockets. Qualquer forma de resistência à ocupação seria retaliada da forma que eles fizeram.
Acha que a perda de vidas foi um preço que os palestinianos tiveram de pagar?
Sem dúvida. Qualquer povo que queira viver com dignidade tem que pagar um preço, e isso é legítimo.
Mas as pessoas podem questionar a estratégia do Hamas, podem pensar que os israelitas usaram o álibi dos rockets para a guerra. Esta estratégia foi boa?
O verdadeiro álibi de Israel para atacar é a nossa presença nesta terra. Como explica o que se passa na Cisjordânia? Não há rockets na Cisjordânia, não há resistência, até há rendição da parte da Autoridade Palestiniana. Então porque é que Israel mata palestinianos lá? Durante os últimos seis meses mais de 50 mártires morreram na Cisjordânia.
É preciso uma saída. Qual é o próximo passo? Um governo de unidade?
Se a ocupação acabar teremos a nossa liberdade. Se a ocupação não acabar, nada mudará.
Desde Junho de 2007 os palestinianos têm dois governos, na Cisjordânia e em Gaza. O que pode fazer o Hamas para os unir?
Lembro-lhe que quando a Alemanha invadiu a França, nomeou o general Pétain como líder da França. Os franceses aceitaram esse governo alemão ou lutaram contra ele e recuperaram a sua liberdade?
Compara o Hamas com a resistência em França na II Guerra Mundial?
Sim.
Mas as pessoas na Cisjordânia estão a aceitar o governo de Ramallah.
Não é verdade. Aquilo não é uma democracia. Salam Fayyad, o primeiro-ministro, tem apenas um lugar no parlamento, enquanto que o Hamas tem 78. Dois terços do parlamento são nossos. Então quem tem o direito de formar governo de acordo com as regras democráticas?
É uma prioridade do Hamas criar uma união com a Autoridade Palestiniana ou não?
A nossa prioridade é aliviar os palestinianos, dar-lhes o que necessitam, quebrar este bloqueio, abrir as fronteiras.
E a unidade?
Os palestinianos estão unidos no terreno. O governo de Ramallah representa Israel, EUA e o Quarteto.
Que pensa do presidente Abbas?
Já não é um presidente, é um traidor. Deve ser levado a tribunal por trair e colaborar contra os palestinianos. É responsável pela divisão e por pôr a resistência na cadeia.
Como vê o comportamento dos países árabes nesta guerra, a começar pelo Egipto, que manteve a fronteira fechada?
É lamentável, um grande desgosto para nós. Prova que há árabes que são parte deste processo contra os palestinianos.
Isso não faz o Hamas sentir-se isolado?
É muito doloroso, mas retiramos a nossa força de quem nos elegeu e escolheu a resistência. Não nos sentimos isolados porque todas as comunidades árabes e livres do mundo estão connosco. E estes regimes árabes são ditadores não escolhidos pelo povo, instrumentos da administração americana.
Há algum governo árabe ou islâmico para o qual o Hamas se possa virar?
É verdade que nem todos são iguais. O pior é a posição do Egipto.
Quem vos ajuda?
Síria e Qatar já deram ajuda e apoio.
Recebem ajuda do Irão?
O Irão é um país chave no Médio Oriente, e tem uma posição clara de apoio à causa palestiniana. Apoiam vários projectos, famílias de mártires e organizações de caridade.
Quais foram os principais contribuidores da ajuda que o Hamas deu às pessoas depois da guerra?
Recebemos apoios e doações de todo o mundo árabe, islâmico e de todo o mundo livre.
Quanto receberam para distribuir?
Não posso responder, por razões de segurança.
Quanto vão dar a cada família?
O governo declarou que há 52 milhões de euros para distribuir. 4000 euros para cada família que perdeu a casa, 2000 para quem teve familiares mortos, 500 para feridos. Isto, como ajuda de emergência.
Se os mediadores internacionais pedirem ao Hamas para reconhecer a existência de Israel, ou seja para aceitar as fronteiras de 1967, o Hamas estaria disposto a fazê-lo?
Todas as terras da Palestina são nossas. Mas, apesar disso, aceitámos estabelecer o nosso estado nas fronteiras de 1967. Podemos aceitar uma solução temporária de dois estados, mas sempre consideraremos o resto das terras como nossas.
Se os espanhóis viessem e ocupassem a sua terra, e ao fim de algum tempo lhe viessem dizer: damos-lhe 20 por cento e você tem que aceitar que 80 por cento é nosso, aceitava?
Para viver numa paz permanente, o Hamas estaria disposto a reconhecer Israel?
Antes de 1948 havia um Estado chamado Israel? Onde estavam os judeus? O meu pai é mais velho que Israel. Os estados não podem ser construídos à força.
Como palestinianos, temos uma herança. A nossa terra é a terra da paz. O nosso deus significa paz. Criamos as crianças na base do amor. Elas não odeiam pessoas, amam as pessoas, a vida. Mas isso não significa que eu lhes ensine a desistir da sua terra.
Sou um refugiado aqui. A minha aldeia, de que o meu pai foi expulso, ainda existe ao pé de Ashkelon. Não é justo que a paz venha à custa dos meus direitos. Desde 1948 até agora tivemos cinco guerras, dezenas de milhares de palestinianos foram mortos. Seria aceitável, justo, depois desta longa marcha, aceitarmos paz à nossa custa? Será justo que os judeus expulsos da Europa no Holocausto resolvam o problema à nossa custa?
O problema é simples. Israel tem que sair das terras de 1967 sem condições, a troco de paz. E nenhum atacará o outro.
Mas reconhecer Israel, isso não aceitaremos. Ter relações normais com Israel, não. Asseguramos que não os atacaremos, e eles em troca têm que garantir que não nos atacam.
Há países que lidam uns com os outros e não se reconhecem.
É injusto a comunidade internacional pedir-nos isso.
É impossível reconhecerem Israel por causa dos refugiados que estão fora?
É uma questão básica, de crença. Para além, claro, da questão dos refugiados, que é um pilar.
Portanto, o fim final do Hamas seria uma solução Um Estado.
Digo-lhe honestamente: não há futuro para Israel enquanto estado racista, judaico. Não há futuro para um país assim. O nosso problema é a questão da democracia. Se a democracia prevalecer no mundo árabe, Israel não se aguentará. Israel aguenta-se não por causa da sua força militar, ou poder americano, mas devido à corrupção dos regimes árabes.
Admitiria uma solução Um Estado com judeus e palestinianos, vivendo lado-a-lado?
Não temos qualquer problema com a solução Um Estado com todas as religiões a viverem juntas. O problema é dos judeus, não nosso.
Mas o fim do Hamas não é formar um estado islâmico?
Absolutamente não. Não está na nossa agenda. Queremos um estado democrático, onde as pessoas possam viver livremente, com liberdade de religião, em que a lei prevaleça. Um estado pacífico, respeitador das escolhas das pessoas.
Nós não receamos o futuro. Acreditamos no futuro. Quem receia o futuro é Israel. O que aconteceu em Gaza é o trabalho de cobardes, daqueles que têm medo, não dos que são fortes.
Que espera de Obama?
É bom para a América e não tem qualquer significado para nós. Quem governa a América é um grupo de instituições. Não é uma questão de gostar dele ou não. Vamos olhar para o trabalho dele, mas não temos grande coisa a esperar.
Uma das primeiras decisões de Obama foi ter um enviado no Médio Oriente.
São relações públicas, sobretudo. O que a América está a fazer é anestesiar a região para Israel cumprir os seus objectivos. A América está a dar tempo a Israel. É um parceiro no que se está a passar. A América é responsável por 43 vetos na ONU. O crime que aconteceu em Gaza foi cometido por um braço americano. Israel não se atreve a fazer nada sem a luz verde da América.
O Hamas tem presos políticos em Gaza?
Não temos um único, da Fatah ou de outras facções. Temos entre 10 a 20 prisioneiros à espera de serem levados a tribunal por explosivos e questões criminosas, não políticas.
O porta-voz da Fatah em Gaza diz que o Hamas tem prisioneiros políticos, que ele próprio foi preso, como muita gente.
Estamos a falar agora, não do passado.
Tinham prisioneiros políticos?
Foi uma medida excepcional, por um período limitado de tempo. Depois dos bombardeamentos em Beach Camp [em Julho de 2008, quando morreram vários membros do Hamas, que responsabilizou facções da Fatah].
Militantes de outras facções, como a PFLP, dizem que não há liberdade, que não podem dizer o que pensam.
Não é verdade. Por exemplo, temos muitos media agora em Gaza e pode ver que nem uma única delegação foi fechada. A imprensa é livre de trabalhar em Gaza.
O Hamas é acusado de alvejar militantes da Fatah nas pernas, e encontrámos gente que foi alvejada.
Não é verdade. É propaganda da Fatah contra o Hamas.
Durante a guerra, e depois, seguimos traidores que deram informações à imprensa israelita e essas informações ajudaram Israel na guerra.
Houve gente apanhada a vigiar a resistência e ficou provado que deram informações a Israel.
Essas pessoas foram presas e estamos a lidar com elas agora. Algumas podem ser da Fatah, mas não quer dizer que estejamos contra a Fatah. Estamos contra os traidores em geral.
Portanto, Fatah, PFLP, Jihad Islâmica podem expressar-se livremente em Gaza?
Todas as facções da resistência trabalham livremente. Mas aqueles que trabalham com ordens de Ramallah não são livres.
O que quer dizer?
A prática de Ramallah é trazer caos para a sociedade de Gaza, e isso é algo que não podemos permitir, porque quebra a unidade interna. Não pagar às pessoas o seu salário, e muitos outros actos feitos por Ramallah para dividir e trazer o caos.
(publicado em 1 de Fevereiro na edição impressa do Público)
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