Jan 30, 2009
Os marginais do reino Hamas
Repressão, interrogatórios, espancamentos, tiros. É o que contam do Hamas os militantes que não são do Hamas. Histórias de um território degradado pela ocupação israelita e pela guerra. Jihad, socialista filho de socialista, tem um apelo: “Pedimos à comunidade internacional que nos ajude a sair deste dilema.”
Reportagem
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza
Gaza tem uma cor nos céus: verde-Hamas. Nos candeeiros, nos postes, nas casas, essa é a bandeira, ao longo das estradas e no meio da cidade. De vez em quando avista-se também a bandeira multicolor palestiniana, e é tudo.
E é um sinal do que está a acontecer desde que o Hamas tomou o poder, há um ano e meio.
Os militantes de outros partidos contam histórias de repressão violenta. A Fatah de Arafat, que nem há cinco anos tinha a sua bandeira amarela por toda a parte em Gaza, parece ter-se eclipsado. Entrou numa clandestinidade de muitos milhares.
É o caso de Mohammed.
Para chegar a ele é preciso ir com homens da sua confiança através de um labirinto de ruelas, em Jabaliya, no Norte de Gaza.
Jabaliya é um nome mítico para os palestinianos, porque foi aqui que rebentou a Primeira Intifada, em 1987. Dezenas de milhares de pessoas divididas entre Jabaliya-cidade, menos pobre, e Jabaliya-campo-de-refugiados.
Na Jabaliya pobre há um improvisado Café Internet que pertence a Mahmud, 22 anos, um convicto partidário da Fatah. Mahmud conhece a família de Mohammed e oferece-se para levar lá o P2, enquanto não há electricidade. “Tenho que fechar o café sempre que não há electricidade.” O que tem sido a maior parte do tempo, desde a guerra.
“O Hamas diz que é democrático, mas usou força e tortura contra os palestinianos”, vai dizendo Mahmud pelo caminho, entre solavancos de cimento e terra batida. “Um dos meus amigos perdeu as pernas. Alvejaram-no e ele teve de ser amputado, porque era da Fatah, e trabalhava nas forças da segurança presidencial.”
O Hamas ganhou democraticamente as eleições legislativas palestinianas em Janeiro de 2006 – não só em Gaza, em todos os territórios. Formou um governo de unidade nacional, mas a tensão com a Fatah e com a comunidade internacional nunca se resolveu. A própria Fatah estava corroída por tensões entre as facções internas, que se responsabilizavam mutuamente pela humilhação da derrota. Diplomatas e políticos estrangeiros não falavam com o Hamas, listado como organização terrorista. Gaza começou a ficar violenta, com raptos e assassinatos, que o Hamas – mas também a generalidade da população – atribuía a Mohammed Dahlan, o poderoso responsável pelo aparelho de segurança da Fatah. Até que em Junho de 2007 o Hamas tomou o poder em Gaza, depois de confrontos que fizeram mais de 100 mortos. Sem terem um estado, os palestinianos passaram a ter dois governos, um em Ramallah, nomeado pelo presidente Mahmoud Abbas e chefiado por Salam Fayyad, e outro em Gaza, chefiado por Ismail Hanyieh, do Hamas.
“Aqui não há liberdade, não é uma democracia”, continua Mahmud. Que pensa ele dos “rockets” que o Hamas lançou para Israel? “São inúteis.”
Durante a Segunda Intifada, a partir de 2000, Jabaliya era também um forte bastião das Brigadas Al Aqsa, ligadas à Fatah. Em 2002, o Público viu neste campo de refugiados militantes da Fatah equipados com armas, granadas, cintos de explosivos e bombas caseiras. Tudo isso parece desaparecido. “Toda a gente que tinha uma arma teve que a entregar ao Hamas”, diz Mahmud. “Os militantes que eram das brigadas Al Aqsa são vigiados.” E, ruela a ruela, não se vê um único homem armado, o que antes era uma visão comum.
“Eu fui interrogado duas vezes pelo Hamas”, conta Mahmud. “E fui espancado. Bateram-me com paus na estação de polícia de Jabaliya. Era o dia do aniversário da morte de Yasser Arafat e eu estava a vir da manifestação em sua memória quando me prenderam. Só nos queriam humilhar.”
O carro dobra agora uma esquina com um mural em que foi pintada a cara de um rapaz muito jovem. “Ele foi morto na mesma altura em que me prenderam.”
E, de repente, desembocando numa espécie de terreiro entre prédios, uma bandeira amarela da Fatah. Agora é preciso ir a pé, porque os caminhos são estreitos. Areia e pedras. Placas de zinco a proteger os casebres. Aqui é onde Jabaliya é mais pobre.
A vingança
Dois irmãos, ambos estudantes, guiam Mahmud e o P2 até à casa de Mohammed. Cá fora, crianças descalças, lá dentro uma sala cheia de homens sentados, um poster das Brigadas Al Aqsa, um autocolante do presidente Abbas na porta.
A porta fecha-se e volta a abrir-se para deixar entrar um homem numa cadeira de rodas. Eis Mohammed, que não quer o apelido no jornal. É magro, esquálido, de barba negra. Os pés pendem como bocados soltos. “Levei 15 tiros, um na mão, um no peito e 13 nas pernas.” Aconteceu durante os confrontos quando o Hamas tomou o poder? “Não, há seis meses.” Mais exactamente, em Julho de 2008, depois de vários membros do Hamas terem morrido numa explosão que o Hamas atribuiu a sabotagem da Fatah.
“Eu trabalhava para os serviços de informação da Autoridade Palestiniana, não estava nos grupos armados. Era uma sexta-feira e tinha ido rezar à mesquita. Quando voltava, a pé, vi um carro com quatro homens de cara coberta e sinais das Brigadas Al Qassam.” A ala armada do Hamas. “Vieram em direcção a mim, saíram, apontaram-me a arma e disseram-me para entrar no carro.” As ruas estavam desertas, conta Mohammed. “Agarraram-me, vendaram-me e levaram-me para dentro do carro. Bateram-me com o cabo da arma.”
De que o acusavam? “De organizar reuniões ilegais da Fatah, e de ter contactos com Ramallah. Quando chegámos a uma zona ao pé da praia, tiraram-me à força do carro e um deles começou a disparar para as minhas pernas.”
Arregaça as calças para mostrar as pernas reduzidas a pele e osso, cobertas por cicatrizes e manchas. “Deixaram-me a sangrar, e não se foram embora, para ter a certeza de que eu não tinha assistência. Isto durou uns 15 minutos. Depois foram embora. Eu tinha o meu telemóvel, telefonei para uma ambulância. Foi um milagre ser salvo, precisei de tanto sangue. Estive em coma dois meses no Hospital Al Shifa.” O maior de Gaza. “E fui transferido para Israel.”
Ouve-se um bebé aos gritos noutro quarto.
Mohammed acha que o que lhe aconteceu foi uma vingança. “Eles queriam castigar alguém pela explosão que matara gente deles.” Mas além disso acha que Gaza vive em repressão. “Isto é uma ditadura. Não nos podemos mexer, somos acusados de ser traidores por Israel.”
Os “rockets” lançados contra Israel antes e durante a guerra “são uma estratégia do Hamas para não perder a cara”. “É só para os media, para dizerem que existem. Muitos caíram em cima de palestinianos.” E fora do Hamas ninguém tem armas, assegura. “Toda a gente com uma arma pode ser alvejada.”
Que fazer agora? “Tem que ser formado um governo de unidade nacional.” Unidade? Está Mohammed disposto a perdoar ao Hamas? “Perdoaria, a troco de esperança, para outros viverem.”
Bandeira vermelha
Bem para sul, em Khan Yunis, há um conjunto de casas onde de repente se avista, não uma, mas duas bandeiras vermelhas.
É a cor da PFLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina), um movimento marxista fundado por George Habash em Dezembro de 1967, seis meses depois de Israel ter ocupado a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.
Nascido numa família cristã ortodoxa, Habash – que morreu exactamente há um ano, na Jordânia – foi durante décadas um rival de Yasser Arafat.
Era no tempo em que grande parte da militância palestiniana contra a ocupação israelita era laica e socialista.
O Hamas, então, representava uma minoria.
Hoje, a causa palestiniana não avançou, regrediu territorialmente, e os sinais de devoção islâmica generalizaram-se. É raro ver uma mulher adulta em Gaza com a cabeça descoberta.
Mas nesta rua dos arredores de Khan Yunis uma família mantém-se orgulhosamente laica e socialista, a família de Abu Jihad Shain.
Abu Jihad quer dizar “pai de Jihad”. Depois de serem pais, muitas vezes os palestinianos passam a ser conhecidos como pais do seu filho mais velho. E o filho mais velho de Abu Jihad é este rapaz sorridente chamado Jihad, que aparece com um amigo mal ouve o carro.
Vão logo buscar cadeiras de plástico, e café, com bule e chávenas – a hospitalidade tradicional, no meio da rua, num bairro que ainda na véspera foi bombardeado, depois da morte de um soldado israelita.
Jihad estuda administração na Universidade Al Azhar de Gaza, a rival da Universidade Islâmica, ligada ao Hamas. “Somos uma família socialista, que luta por um estado socialista e contra o isolamento e a segregação”, começa ele. “A PFLP ensinou-nos a estarmos ao lado do nosso povo nas noites mais escuras.”
Que relações têm com o Hamas? “Poucas. O Hamas é unilateral em Gaza, não partilha as decisões. É uma forma de ditadura. Não há liberdade para darmos a nossa opinião, não podemos levantar a voz.”
E isto não se aplica apenas aos militantes de outros partidos, diz Jihad. “Há um estado de medo na comunidade, de receio de falar, porque se é considerado ateu.”
Ser cristão, por exemplo, não é visto de forma estranha, e há uma tradição de comunidades cristãs em Gaza, que têm escolas onde filhos de muçulmanos estudam. Mas ser ateu pode ser mais incompreensível.
Jihad não se define como ateu. “Acredito em Deus, toda a gente aqui acredita em Deus, mas não sou religioso.”
Há dias, Louis Michel, responsável da União Europeia pela ajuda humanitária, insistiu em chamar terrorista ao Hamas, durante a visita que fez a Gaza.
Com isto, Jihad não concorda. “O Hamas não é terrorista porque todas as acções que faz têm a ver com os palestinianos. E uma prova de que não é terrorista é que você está aqui a fazer o seu trabalho.” O problema do Hamas, diz é a repressão das outras facções.
Exemplos? “Em Novembro fomos a funeral de um combatente da PFLP. As brigadas Al Qassam [do Hamas] cercaram-nos e queriam prender gente. Não conseguiram porque a multidão nos rodeou e protegeu.”
Gaza está pior desde que o Hamas tomou o poder?
Amar, o amigo, que também pertence à PFLP e tem estado a ouvir em silêncio, responde antes: “Claro que está pior. Antes os palestinianos não lutavam entre si.” Quem criou a divisão? “O Hamas e a Fatah, ambos. E o que aconteceu levou a muitas mortes, prisões, tortura, de um lado e do outro.” Como se sente Amar? “Sem liberdade. Não posso exprimir a minha opinião. Sou conhecido aqui por falar e vigiam-me. Até as minhas chamadas são ouvidas.”
Jihad tem um apelo a fazer: “Pedimos à comunidade internacional que nos ajude a sair deste dilema. Que organizem uma conferência, que façam um governo de unidade, e que depois haja eleições.”
A culpa da guerra, diz, é de Israel mas também do Hamas. “E é por isso que apelo. Sentimo-nos miseráveis. Centenas de pessoas foram mortas, muitas casas ficarem destruídas, e não vejo que se tenha conseguido alguma coisa com esta guerra.”
(publicado a 30 de Janeiro, na edição impressa do Público)
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