Jan 25, 2009

Gaza, um túnel sem saída

É uma rede comercial subterrânea. Com o bloqueio, a faixa depende deles para tudo. Israel tentou destruí-los e arrasou as casas
Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, Gaza

A família de Mohammed tem não um, mas dois túneis entre Gaza e o Egipto. Com o bloqueio das fronteiras, no último ano e meio, tem sido assim. Um boom. "Neste momento há 2000 ou 2500 túneis aqui", diz Mohammed, como se estivesse a falar de lojas. E de certa forma está.

Hoje [ontem], primeiro sábado depois do cessar-fogo, é dia de mercado em Rafah, a cidade no Sul de Gaza que faz fronteira com o Egipto, e Mohammed está a vender fogões a petróleo, um bem essencial ao longo da guerra. Durante semanas foi impossível encontrar gás. Ao lado dos fogões de cozinha, as famílias passaram a ter um pequeno fogão a petróleo, onde faziam toda a comida.

Agora, já se vende gás à entrada de Rafah, mas é preciso esperar horas numa fila de rapazes e homens sentados em botijas vazias.

Portanto, Mohammed continua a fazer negócio no mercado central. Tem um monte de pequenos fogões verdes no chão. "Trazemo-los por túneis, como tudo o que aqui está." Cafeteiras eléctricas, televisões, fraldas, queijo de triângulos.

"Antes desta guerra eu trabalhava nos túneis, trazia as coisas para o lado palestiniano, mas agora compro as coisas e vendo aqui." Com ajuda de alguém do outro lado. "Há um parceiro egípcio que põe as coisas no túnel. Não chegamos a andar nas ruas. A maior parte dos túneis vai sair por baixo de casas."

É assim que os túneis de Gaza são túneis sem saída. Os palestinianos arriscam a vida - e vários morrem - a andar de um lado para o outro debaixo da terra, mas não conseguem sair. Seriam repelidos. O Egipto não está interessado em ter refugiados, como se viu durante a guerra.

E por causa dos túneis, Rafah tornou-se o grande mercado da Faixa de Gaza desde que o Hamas tomou o poder, em Junho de 2007. Com Israel a bloquear as fronteiras, toda a zona junto à fronteira egípcia começou a ser escavada. Já havia algumas passagens, utilizadas pelos militantes para trazer armas e munições, mas agora é uma realidade doméstica. Faz parte de cada casa.

"As grandes famílias têm pelo menos um túnel", diz Mohammed, descontraidamente, já rodeado por uma multidão. Até que um velho de grandes barbas abre caminho e o ameaça com a bengala. "Porque estás a contar-lhe tudo isso? Os túneis são coisas nossas!"

Remendar a guerra
Entre o mercado e o muro da fronteira, os passeios de Rafah estão carregados de produtos frescos, acabados de chegar. Microondas, computadores, motas - até vacas são trazidas pelos túneis. O que não veio do Egipto vem da ajuda humanitária. Virando à direita, depois de mais um carro de burro carregado com um saco da ONU, aparece a linha da fronteira, ao fundo.

Esta é a zona de Rafah que mais sofreu durante a guerra. Já havia várias casas derrubadas por Israel, para garantir a vigilância da fronteira. Mas agora são mais as destruídas do que as que continuam em pé. Vêem-se montanhas de entulho fresco e famílias inteiras sentadas nas ruínas, de cabeça baixa, à espera de ajuda.

Já uns metros adiante, em plena Estrada de Filadélfia - o corredor poeirento que separa Gaza do Egipto -, vai uma actividade febril.

Para a direita, montes de terra com tendas brancas a perder de vista. Para a esquerda, mais montes de terra com tendas brancas a perder de vista. Cada tenda é um túnel. Ou seja, toda a linha de fronteira é agora uma linha de túneis. E ouvem-se tractores e escavadoras entre um formigueiro de miúdos e homens. Um estaleiro, a reparar os danos da guerra.

"Tudo isto começou com o bloqueio, se o bloqueio não existisse, não existiam túneis", resume Mustafá, de 28 anos, o dono do túnel mais próximo. É uma cratera de terra, com uma espécie de escada de metal por onde se desce. Agora não se pode descer porque a terra abateu. Uma escavadora anda para trás e para diante, enquanto dezenas assistem, com os pés enfiados na terra mole.

"Foi atingido por um F16", explica Mustafá. "Quarenta metros de túnel desabaram. E não sabemos dos danos do outro lado."

Quem está do outro lado? "Gente que trabalha para nós." O que é que costumam trazer? "O que as pessoas precisarem." A última vez que o túnel funcionou foi uns dias antes da guerra.

"Trouxemos roupa interior."Do outro lado da cratera, um miúdo fuma uma beata em cima de uma velha mesa de bilhar enfiada na terra, como a prancha de uma piscina. Ainda se vê o pano verde, em farrapos.

Mustafá demorou sete meses a construir o seu túnel. Tem 450 metros de comprimento e várias saídas do outro lado, consoante o que ele quer trazer. Ao longo da fronteira há túneis mais curtos e mais compridos. Alguns têm calhas para facilitar o transporte, outros têm a altura de um homem.

Neste é preciso ir a rastejar. "São 60 centímetros de altura e 40 de largura." Como é que se segura a terra lá dentro? "Com suportes de madeira e metal."

Mustafá não faz de conta que não é perigoso. "Já morreram cinco pessoas lá dentro, foram acidentes." Mas quanto a medo, o que tem a dizer é isto: "Deixámos de ter medo."

(publicado em 25 de Janeiro na edição impressa do Público)

6 comments:

J. Ryder said...

Well done!

Fernando Gouveia said...

Al Capone era um dos principais financiadores de sopas dos pobres na Chicago da Grande Depressão -- mas fazer uma biografia dele em que se realce isto e se omitam os assassinatos, a violência, a extorsão, a corrupção... bem, seria uma biografia falaciosa, não?

Rui Magalhães said...
This comment has been removed by a blog administrator.
Fragalis said...

Parabéns,
excelente trabalho. Continue.
F

Nuno Reis Gonçalves said...

Em primeiro lugar queria felicita-la pelo artigo. Em segundo lugar, gostaria de lhe pedir a sua opiniao. Sou um fotografo independente e tenho planeada uma viagem em direccao ao Egipto, com destino a fronteira com Gaza, com o objectivo de retratar os tuneis de que fala na sua reportagem. Na verdade, nao tenho nenhuma experiencia fotografica em cenarios de conflito e ja falei com alguns fotojornalistas que me advertiram que poderia ser bastante arriscado aventurar-me independentemente por essas paragens. Pensei que, melhor que ninguem, como esteve, ou esta, nesta regiao, me poderia clarificar um pouco a atmosfera vivda pelos locais e se estes estao abertos a este tipo de sugestoes, neste caso, fotografar os tuneis tao importantes para o dia a dia destas pessoas.
Agradeco desde ja a sua disponibilidade e fico ansiosamente a aguardar uma resposta sua.
Com os melhores cumprimentos.
Nuno Reis Goncalves

Público said...

Caro Nuno,

1. Entrei pela outra fronteira, a de Israel. Sei que alguns jornalistas entraram pelo Egipto, e que foi caro e moroso. Não sei sequer se ainda é possível. Eu entrei por Erez, a fronteira com Israel, porque ia fazer também trabalhos em Israel. Para entrar por aí precisa de ter um cartão de imprensa passado pelo gabinete do governo israelita, e eles não facilitam a vida aos free lancers. Sempre que algo acontece com um soldado, Israel fecha a fronteira.

2. Os donos dos túneis são avessos a jornalistas e fotos. Foi um pouco tensa a minha visita, e se espreitar o site da Al Jazeera english vai ver que a experiência deles também foi complicada.

3. Se não tem experiência deste conflito, talvez os túneis de Gaza não sejam o melhor para começar. Tenha em atenção, também, que vai precisar de um guia, e isso é caro.

4. Se ainda assim quiser experimentar, há um fotojornalista português free lancer a trabalhar em Gaza, e talvez ele possa dar-lhe algumas pistas.

Obrigada, boa sorte

Alexandra