Jan 26, 2009

Eyad Sarraj Se eu tivesse um rocket, tê-lo-ia atirado contra Israel


Crianças palestinianas regressam à escola no sábado pela primeira vez desde o começo da ofensiva israelita
(© Olivier Laban Mattei/AFP)


É o rosto internacional de Gaza. Durante a guerra podia ter saído e não quis. A cada momento pensou que podia ser ele a morrer. Tinha visto as intifadas, e todas as guerras desde 1948, mas nesta viu "a cara pior de Israel". E deixou de ser pacifista. A dignidade está na resistência. Agora, defende boicote, desinvestimento e sanções contra Israel.

Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza


Como centenas de milhares de pessoas em Gaza, o psiquiatra Eyad Sarraj está a pisar vidros e outros destroços. "Isto é o meu gabinete!", diz, ainda perplexo.

É domingo, o primeiro dia depois do cessar-fogo em que a Cidade de Gaza voltou a ter engarrafamentos, porque já não caem bombas e já se arranja gasolina. Os mercados estão cheios de frutas e de roupas, nas ruas há milhares de cabeças brancas, que são as raparigas a caminho da escola com os seus lenços de estudante. Por toda a parte se vêem crianças de mochila e farda às riscas, a irem para as aulas ou a voltarem das aulas, consoante os turnos.

E no meio de toda esta vida, em cada esquina, sinais frescos da guerra. Às vezes são prédios transformados num monte de entulho, como se tivessem acabado de desabar. Às vezes só uns rombos, umas paredes, uns vidros partidos.

Foi o que aconteceu à sede do Programa de Saúde Mental de Gaza, uma organização não-governamental dirigida por Sarraj e reconhecida pelo mundo.

Aos 64 anos, Eyad Sarraj é o rosto não-partidário e internacional de Gaza.

Quando o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, aqui veio há dias, falou com ele. Políticos, mediadores, organizações humanitárias em visita a Gaza vão ouvi-lo. E depois há os jornalistas.
Uma televisão assentou a câmara entre os cacos e está a entrevistar Sarraj no momento em que o P2 chega para o fotografar.

O escritório fica no quarto andar da organização, e por baixo os estragos não são menores. Há tectos que abateram e vidros por toda a parte. Os funcionários olham do jardim para o que aconteceu, em silêncio.

Em casa na guerra
O P2 entrevistou Eyad Sarraj em sua casa sexta-feira, primeiro dia em que centenas de jornalistas estrangeiros puderam entrar em Gaza, depois de Israel ter bloqueado o checkpoint durante semanas.

Em Junho de 2007, num encontro anterior com o P2, Sarraj recuperava de tratamentos a um cancro. Agora o cabelo voltou a crescer. "Estou óptimo." E assim parece.

Ao contrário do escritório, a sua casa no centro da Cidade de Gaza não foi atingida. Tudo intacto, do jardim à grande sala de estar.

"Passei aqui a guerra", diz, sentando-se ao lado de uma estante com livros e dois alaúdes antigos. "Os britânicos e a ONU telefonaram a perguntar se eu queria sair. Tenho um passaporte britânico e a minha mulher trabalha para a Comissão de Direitos Humanos da ONU. Ela queria ir, mas eu disse que não. Depois temos a culpa do sobrevivente, de não termos estado aqui."

E durante 22 dias, Sarraj e a família viveram como toda a gente em Gaza.

"Estávamos aterrorizados. De cada vez pensávamos que podíamos ser nós. À volta tantas casas foram bombardeadas. A casa da presidência, a sede da polícia, a Universidade Islâmica, tudo isso é aqui ao pé."

A casa estava cheia: ele, a mulher, três crianças, a cunhada com a filha e amigos com cinco filhos. Não havia electricidade, usavam um gerador. "De manhã, tudo isto estava cheio de crianças", e abre os braços para a sala. "Uma noite, ninguém conseguiu dormir, foi um bombardeamento constante, todo o dia e toda a noite, com explosões enormes." Faz uma pausa. "Sabe a que conclusão cheguei? Que isto é o mal sem fronteiras."

E a partir daqui Eyad Sarraj - o pacifista, promotor dos direitos humanos, um palestiniano que se encontrou com tantos israelitas e viajou pelo mundo a defender o diálogo - começa a explicar o efeito que esta guerra teve nele: "Sempre falei na necessidade de paz com Israel, mas agora já não acredito na paz. Estávamos a iludir-nos. É impossível ter paz com um sistema racista, de apartheid. Israel, que é experiente em trauma desde o Holocausto, que podia falar ao mundo em direitos humanos e igualdade, tornou-se um caso de doença patológica, de paranóia."

Fala sem hesitação, como se ao longo da guerra isto se tivesse encadeado no seu espírito.

"Os judeus trouxeram tanta dor do Holocausto e estão a projectar isso nos palestinianos. Em vez de lidarem com o seu trauma, projectaram a vitimização nos palestinianos. Suprimiram a culpa, não a exprimem." Na esquerda da esquerda israelita, não é assim. Mas Sarraj sabe que é uma pequena percentagem. "Intelectuais israelitas clarividentes expressam essa culpa de muitas formas. Mas o sistema político e a comunidade em geral estão doentes: culpam os palestinianos."

maioria dos israelitas aprovou a guerra por causa dos rockets do Hamas e muita gente acha mesmo que foi a melhor guerra de Israel em anos.

A raiz do mal
"Durante muito tempo ouvi dizer que podíamos ir viver para outro país árabe", continua Sarraj. "'Porque é que não vão embora?', ouvia eu. Ontem, disse à Comissão Europeia, a Chris Berger e 22 representantes europeus: 'Se gostam tanto de Israel, aconselho-os a levarem Israel para casa.' Pois se a nós nos dizem que podemos ir para os países árabes, eles que vão para a Polónia, para a França, onde serão tratados como iguais. Pois aqui, desde que Israel foi fundado, é guerra atrás de guerra. Israel semeia violência por toda a parte. Usa a força bruta ao máximo, pensando que assim compensa a fraqueza mostrada no Holocausto. Envergonham-se de terem sido levados para as câmaras de gás sem resistência. E agora não querem que nós resistamos."

O Holocausto, diz Sarraj, "tinha uma raiz do mal, e essa raiz foi exportada para aqui".

Escritores israelitas como Amos Oz trataram o trauma da fraqueza. Israel foi fundado na promessa musculada de que nunca mais os judeus se deixariam morrer como cordeiros. E o Exército, orgulho nacional, corporiza isto, com a contribuição de cada família.

No romance Ver: Amor, David Grossman defendeu que, pelo contrário, o humanismo devia ser a melhor lição do Holocausto.

"Há gente em Israel e na Europa do lado da justiça, e manifestam-se", diz Sarraj. "Mas os governos sempre apoiaram Israel porque o lobby israelita os pressiona com acusações de anti-semitismo e porque obedecem à América contra o seu livre pensamento. Conheci tantos diplomatas europeus, e todos disseram que não tinham alternativa que não seguir a América. A Alemanha não pode dizer nada por causa da história dos judeus e a Grã-Bretanha tem um forte lobby judeu."

E agora Obama? "Espero que faça a diferença. Vem dos desiguais, dos negros, tem essa herança e identifica-se com a vítima. Acho que ele conhece esta história. Veio cá, conheceu [o presidente palestiniano Mahmoud] Abbas. Abbas disse-me que lhe tinha mostrado os mapas de como o estado palestiniano tinha diminuído desde a proposta de 1948. Mas Obama precisa de coragem para enfrentar o lobby sionista."

Para já, crê Sarraj, Obama contribuiu para o cessar-fogo. "Acho que houve um acordo tácito entre Bush, Obama e Israel para acabar com esta guerra antes de ele tomar posse, para não começar a sua presidência com matança. E o preço que pagámos para isso foi o seu silêncio. Não é um bom sinal. Antes de tomar posse, tem a desculpa de haver só um Presidente. Depois, disse que a segurança de Israel é uma prioridade. Não me importo. Mas porque não falam na nossa segurança?"

Foi o que Sarraj perguntou ao secretário-geral da ONU, quando ele entrou em Gaza depois do cessar-fogo. "Querem todos proteger Israel, e quem nos vai proteger? Não temos marinha, nem tanques, nem F16. Todo o mundo está preocupado com Sderot [povoação israelita ao alcance de rockets] como se fôssemos invadir Israel! E não houve uma única casa destruída em Israel, só um telhado!"

Que respondeu Ban Ki-moon? "Que compreendia, que nos apoia, mas que temos que ter a certeza de que o processo de paz continua." O que é que Sarraj pensa disso? "Que é um disparate. Precisamos de pessoas corajosas como Richard Falk, o relator especial da ONU, que disse que Israel está a cometer crimes contra a Humanidade. Desmond Tutu tinha dito isso há meses."

Nascido em 1944 em Beersheva, hoje Israel, Sarraj sabe o que significa ser refugiado. "Eu vi 48 e as histórias de desenraizamento. Passei a guerra do Suez, apontaram-me armas, eu tinha 12 anos. Vi cadáveres. Vi 67, 73, a Primeira Intifada e a Segunda Intifada, a Primeira Guerra do Líbano e a Segunda. Mas nada foi tão devastador como esta guerra. Desta vez, eu vi a cara pior de Israel."

Se isso teve tamanho efeito nele, que efeito poderá ter numa população de luto, desabrigada e pobre? "Para as crianças é especialmente terrível. Atiraram pedras na Primeira Intifada.

Tornaram-se bombistas suicidas na Segunda Intifada. Agora vão tornar-se mais extremistas. Vão acreditar que só o poder as protegerá, e o poder está em quem tiver armas."

Em que posição fica o Hamas? "Nos próximos meses terá mais membros. E isso só se altera se as pessoas se sentirem seguras, com dignidade. O processo de paz agora é visto como uma forma de traição, porque não tem dignidade. Não há dignidade quando Abbas precisa de autorização dos israelitas para passar o ckeckpoint, e é de dignidade que precisamos."

Sarraj mantém uma certeza: "Os palestinianos nunca sentirão que são derrotados." E sentiu algo que nunca sentira: "Se eu nesta guerra tivesse um rocket, tê-lo-ia atirado contra Israel."

Durante anos foi "crítico do Hamas por usar rockets", quando "usar rockets contra civis é muito errado". Nesta guerra ficou certo de que os rockets foram uma desculpa. "Israel provou-nos que a guerra não era contra o Hamas. Os palestinianos em geral sabem que não é. Se o Hamas fosse erradicado agora, acha que Israel nos daria direitos? Israel quer-nos sem direitos e sem resistência. Se não houvesse ocupação não havia Hamas."

O boicote é uma arma
Este psiquiatra deixou de acreditar na paz. É na resistência que vê a dignidade. E neste pós-guerra - passado o momento em que até atiraria um rocket - acredita na resistência não-violenta, com um princípio de base: "Não devemos abdicar de nenhum dos nossos direitos, particularmente do direito de retorno."

Essa resistência tem três caminhos: "Israel deve ser boicotado em todo o mundo, como um sistema de apartheid, como na África do Sul. Deve haver uma campanha de desinvestimento. E sanções."

Já há casos, diz. "Uma companhia sueca perdeu agora um contrato de três mil milhões de dólares porque estava a construir as estradas dos colonatos em Israel. Tenho recebido centenas de mensagens e assinaturas de académicos estrangeiros a pedir um boicote."

A comportar-se "assim, Israel nunca será aceite no Médio Oriente", diz.

Não foi o que pareceu nesta guerra. "Não", reconhece Sarraj. "Ao ponto de o Egipto dizer que os palestinianos de Gaza são uma ameaça à segurança nacional egípcia. É inacreditável! Mas existe uma diferença entre os governos e a população, que protestou."

Para quem se podem voltar os palestinianos?

"Para si próprios. E para os israelitas com consciência. Israel não pode sobreviver assim. É preciso aprender com a História. A minha mulher tem o cabelo claro e os olhos verdes. Num checkpoint um soldado parou-nos e perguntou-lhe 'É casada com ele?', com o tom de quem pergunta 'Como é que um ser humano pode ser casado com um animal?' Isto é racista. Aconteceu no checkpoint de Erez, em 1979. Hoje o racismo é pior."

E os palestinianos deixaram que isso acontecesse, diz. "A culpa também é nossa. Da estupidez de Arafat, a assinar aqueles acordos. Da violência dos suicidas, que destruiu o campo da paz em Israel." Um grande erro. "Se protejo as minhas crianças, tenho que proteger as crianças de Israel, é o mesmo sangue."

De tudo isto Sarraj vai falar no livro que está a escrever. Vai chamar-se Sozinho em Casa, por causa de todas as pessoas da sua família que foi vendo partir para o estrangeiro. "É uma espécie de autobiografia ligada à política. O impacto psicológico de tudo isto na causa palestiniana e em mim."

A guerra de Gaza será um ponto-chave. "Tornou-me consciente do racismo de Israel. É uma grande mudança."

(publicado em 26 de Janeiro na edição impressa do Público)

2 comments:

Rui Magalhães said...
This comment has been removed by a blog administrator.
Anonymous said...

Qualquer coisa de espectacular esta intreview estou muito grato em ler isto peace.