Jan 27, 2009

Eles perderam o mar durante 22 dias por causa da guerra


Pescadores na Cidade de Gaza: nas praias também há restos de guerra
(© Olivier Laban-Mattei/AFP)


Em Gaza, o mar pode estar aberto ou fechado. Na guerra, esteve fechado. Há quem tenha arriscado um tiro. Há quem tenha pescado um míssil
Reportagem

Amir estava num barco a remos quando o último dia da guerra amanheceu. "Não fomos para longe, só a alguns metros da costa, porque precisávamos de alimentar a família", conta, de braço ao peito e pés na água.

Gaza é uma estreita faixa ao longo do Mediterrâneo. Quem a quiser dominar, tem que dominar o mar. É o que Israel tem feito desde a retirada das tropas e dos colonos em 2005. E nesta guerra o mar foi uma frente vital.

Ainda ali continuam, todos esses navios israelitas, depois das três milhas permitidas aos pescadores, e as pessoas queixam-se de que, mesmo depois do cessar-fogo, eles continuam a disparar.

Mas quando Amir foi ferido faltavam horas para Israel declarar o cessar-fogo. "Éramos dois no barco. O outro levou um tiro no estômago e eu levei um tiro no braço." Este braço direito que está ligado e seguro com um lenço. "Sangrei muito. Tive que mergulhar e depois rastejar pela areia. Quando eles nos viram na água, fizeram explodir o barco." Amir tinha familiares na praia que o levaram ao hospital.

E aqui está, ao fim de mais uma noite de pesca. Neste pequeno porto artesanal, é hora de tirar os barcos da água, contar o peixe, desamaranhar as redes.

Não há barcos muito grandes, são quase todos barquinhos. Vão ali e voltam à pequena baía com restos de tudo na água e na areia, que ainda assim é um daqueles lugares onde Gaza parece, mais que possível, bela.

A pesca em Gaza é uma herança de família. O pai já era, e o pai do pai. Haverá mais de cinco mil pescadores, geralmente com famílias muito grandes, o que pode significar 50 mil pessoas dependentes.

E este número de filhos não é exagero.

Nem um tostão
Por exemplo, o veterano e barbudo Farouq, de 58 anos, tem 18 filhos, 10 raparigas e oito rapazes. Os rapazes trabalham todos com ele. Agora, feita a noite, arrumado o barco e a rede, comem-se uns peixinhos grelhados à beira de um bidão onde arde lume.

Janeiro é Inverno, mesmo no Mediterrâneo. Os homens aquecem-se na areia, enquanto vão metendo peixe no pão.

"Diz-lhe que isto é Hiroxima", grita Farouq para o intérprete do PÚBLICO, antes de qualquer pergunta sobre a guerra. "Eu fiquei completamente desligado do mundo. Não tinha um tostão, enquanto um saco de farinha custava 200 shekels [38 euros]. Durante 22 dias não pesquei. As bombas estavam tão perto que nem nos conseguíamos mexer dentro de casa. Ficámos como refugiados, cada filho meu com alguém da família ou nas escolas da ONU. Eu fui com os meus netos para o hospital Al Shifa, ficámos lá seis ou sete dias. Sem a ajuda da ONU, não estávamos vivos."

Estes homens trabalham do pôr-do-sol às dez da noite e das duas da manhã às seis. Vivem do que pescam.

"Mas o mar não é livre para pescarmos. Os israelitas só nos dão três milhas, uma distância em que mal se consegue." E é perigoso, com os navios de guerra? Farouq ri: "Não ouviu os tiros esta manhã? Eram os israelitas que estavam a disparar."

Esta zona a sul da Cidade de Gaza acordou com tiros, talvez ao longo de uma hora, mas mais para o interior era impossível saber de onde vinham. Os pescadores asseguram que vinha daqui.
"O cessar-fogo é só para os pobres", resume Farouq. "Eles disparam para os barcos. Todos os barcos tiveram que voltar logo quando começaram os tiros."

Um homem alto chamado Mohammed, de 43 anos e 10 filhos, acrescenta: "As pessoas aqui são trabalhadoras, pode ver por si, não há razão nenhuma para atirarem sobre nós."

Num bom dia, Farouq pesca 1000 shekels [190 euros] de peixe. "Mas quando tiro as despesas e divido o lucro fico com 40 [7,5 euros] ou 50 shekels [9,5 euros]."

E, durante a guerra, nada.

Um míssil na rede
Aos 39 anos, Yusef já vai em oito filhos. Acaba de sair de mais um turno na água, trazendo esta história. "Quando puxámos a rede, pelas seis da manhã, ela estava muito pesada." Mas não era peixe. "Vimos que uma parte estava cortada e depois encontrámos um míssil por explodir."

Os peritos que estão a avaliar o perigo das munições por detonar calculam que 10 por cento do que Israel disparou sobre Gaza não explodiu. Cerca de 20 mil casas danificadas ou destruídas ainda vão ter que ser examinadas. Em 2006, depois da guerra de Israel com o Líbano, morreram quase 300 pessoas por causa destas munições.

Mas, como Yusef comprovou, elas também existem no mar.

"Como sei que é perigoso, levei o míssil aos guardas lá fora", explica tão descontraído como provavelmente só alguém num sítio como Gaza poderia estar. "São os restos da guerra."

Depois voltou ao mar. Balanço da noite? "Três caixas com vários tipos de peixe." Descontando despesas, o lucro vai dar ao que Farouq dissera, menos de 10 euros.

"Trabalhamos sete dias por semana, desde que o mar esteja aberto."

É uma estranha expressão para quem vem das costas da Europa, onde o mar não está, é aberto. Mas em Gaza às vezes está fechado. Por exemplo, durante a guerra, ou quando Israel decide.

"Durante 22 dias, eu não pesquei", conta também Yusef. "Estávamos mesmo a viver como miseráveis. Não deixei a minha casa. Vivemos da ajuda. Há uma organização europeia de apoio aos pescadores que nos ajuda na metade do ano em que não pescamos, e aproveitámos essa ajuda. Tínhamos alguma comida, mas não tínhamos dinheiro para outras coisas. A maior parte da guerra bebemos chá com pão."

Mais para dentro da areia, três homens desemaranham uma rede finíssima sem sequer olharem para o que fazem, de tanto hábito. O mais novo, Munzar, de 24 anos, ainda só tem dois filhos.


"Desde criança que pesco com o meu pai. Quando andava na escola passava metade do tempo na escola e outra metade a pescar." Há quantas gerações anda a sua família nisto? "Que eu tenha visto com os meus olhos, desde o meu avô."

A família de Munzar tem cinco barcos, e todos ficaram em terra durante a guerra. "Não corremos riscos. E se nos dão três milhas não vamos mais longe que duas e meia. Podemos ser alvejados a qualquer momento e eles não precisam de razões."

De noite, quando nada se mexe e Gaza fica completamente às escuras, as únicas luzes ao longo da costa são as que os pescadores levam para os seus barcos, pontos luminosos ali onde não se vê, mas é o mar.

(publicado em 27 de Janeiro na edição impressa do Público)

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