Jan 25, 2009

Ahmad, seis anos, alvejado depois do cessar-fogo

A cama parece muito grande com um corpo tão pequeno, de fraldas. Ahmad, seis anos, está deitado, entubado, em coma, numa cama da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Al-Shifa, o maior de Gaza. Como faz calor, não há nada a cobri-lo. A barriga sobe e desce com a respiração. O relatório diz que foi alvejado a 22 de Janeiro.

Ou seja, vários dias depois do cessar-fogo.

Hani Al Shanti, um dos médicos intensivistas, mostra as radiografias. A bala aparece perfeitamente nítida no centro do crânio. "É uma bala de M16, as dos israelitas", diz. "Em Gaza só se usam kalashnikovs russas e essas balas são duas vezes mais compridas."

Mas como, se Israel declarou cessar fogo sábado à noite? "A família dele vive ao pé da fronteira, os soldados israelitas estavam a disparar e ele foi atingido." Foi o que os familiares de Ahmad contaram aos médicos.

"Eles estão lá fora, quer falar-lhes?", pergunta Hani. E leva o PÚBLICO ao átrio, onde Hajid, o pai da criança, espera com um grupo de familiares e vizinhos.

"Vivemos a um quilómetro da fronteira", conta ele. "Na quinta-feira, pelas nove e meia da manhã ouvimos tiros na fronteira e no mar, Ahmad estava a brincar lá fora e foi atingido." O genro acrescenta: "Eu estava com as crianças, Ahmad estava a comer um doce, e de repente caiu com a cara no chão."

Como sabem que a bala é israelita? "É uma bala de M16, que os israelitas usam, o que é comum em Gaza é a kalashnikov, e ninguém estava a disparar do nosso lado", diz o pai.

Toda a gente à volta quer dizer mais. "Os soldados continuam a disparar só para assustar as pessoas, afastá-las da fronteira", diz um. "Ainda ontem atingiram pessoas no campo de Bourj", diz outro. E o genro do pai: "Está convidada para vir a nossa casa esta noite e ouvir os disparos."

Morto no último dia
De volta à sua unidade, Hani Al Shanti vai até à cama em frente à de Ahmad, onde um homem parece dormir. "Já está morto, mas não podemos desligar a máquina, é ilegal, só quando a linha do coração estiver plana."

Este homem chama-se Mohammed Sarbou, tem 25 anos e é pescador. Estava na praia quando foi alvejado por um navio israelita. O relatório diz que isso aconteceu a 17 de Janeiro, o último dia da guerra. "A bala entrou pelo meio da testa", explica Hani.

Todos os médicos do Al Shifa têm histórias terríveis desta guerra, desde os primeiros minutos, quando chegaram 188 mortos e centenas de feridos ao hospital.

"Vi uns 150 feridos morrerem nesse dia", conta Hani. "Não consegui não chorar. Eles estavam simplesmente aqui pelo chão e não podíamos fazer nada por eles."

Kamal Abu Abada, outro médico intensivista, tinha acabado de sair de serviço quando começou o bombardeamento. "Fiquei parado à porta do hospital sem saber se ia ver da minha família ou se voltava ao trabalho." Decidiu voltar. "No tempo de vestir a bata já o hospital tinha sido inundado com mortos e feridos."

Um dos alvos desse megabombardeamento simultâneo foi uma sede da polícia a 130 metros do hospital. " Começámos a abrir mais unidades de cuidados intensivos em todo o lado. Passámos de 11 para 35 camas." Ao longo de toda a guerra receberam 5500 feridos.

Abada tem 52 anos, Hani 32. Duas gerações de intensivistas. Como descrevem o que aconteceu a Gaza nesta guerra? "Um tsunami", diz Abada. "Foi a Zeytun? A Atattra?. Quando voltei lá nem consegui encontrar as casas que me eram familiares. E neste hospital foi a pior situação que já vivemos. A quantidade de casos e o tipo de casos."

A. L. C., Gaza

(publicado em 25 de Janeiro na edição impressa do Público)

2 comments:

Anonymous said...

Censura aos comentários é censura... talvez a mesma que o Hamas impõe à sua população no seu esforço de desinformação na qual você está a colaborar...

Anonymous said...

É uma vergonha...
Israel usa da impunidade internacional concedida pelos EUA, na ONU, que veta sempre decisoes contra israel, e assim faz destes crimes de guerra medonhos...
Como dizia um palestiniano de ramallah num artigo seu anterior, um guerra com propositos eleitorais...
Um governo de unidade na palestina é fundamental
E tambem é inconcebivel como os palestinianos mal podem entrar em jerusalem num territorio da ONU
Tristeza