Feb 6, 2009

As meninas




Crónica

Houve correio em Gaza. No dia a seguir a eu ter escrito que não havia, Ayman recebeu uma carta da Al Jazeera. Ficou a olhar para o envelope. No ano passado, Lulu tinha enviado um email à Al Jazeera Crianças, com a sua morada (Al Zahra City, prédio tal, 6º andar, Gaza) e lá do Qatar eles enviaram-lhe um postal de Ramadão a 3 de Agosto de 2008. É verdade que demorou seis meses, mas há 10 anos que Ayman não vê correio em Gaza.

É a idade de Lulu, a mais velha das meninas.

Fiquei a matutar. As fronteiras de Gaza mantêm-se fechadas, e não circulam carteiros de emergência entre os destroços de 20 mil casas. Como terá chegado a carta?

Ayman recebeu-a do merceeiro ao lado da farmácia. Alguém a entregou, sabendo que a família do 6º andar lá passaria. Mas quem?

A Al Jazeera tem os seus meios, diz Ayman, que acha que a carta veio por um dos túneis que ligam Gaza ao Egipto, onde os palestinianos rastejam centenas de metros para trazer tudo o que falta.

Claro que muitas coisas não há meio de caberem nos túneis, como Ayman ir ver a tia a Beersheva, Heba ir ver a prima ao Canadá, ou parques como Lulu, Mimi e Nunu vêem na televisão.

Nunca ouvi as meninas a chorar e não as imagino a fazer uma birra.

Em Agosto de 2005, quando os colonos saíram de Gaza, Lulu mostrou-me o seu primeiro caderno de inglês ao som daquele poc-poc-poc, que parece pipocas e são tiros. Em Junho de 2006, quando os F16 cortavam a barreira do som todas as noites, o que é como se a cabeça explodisse, e depois começaram a largar bombas, as meninas saltavam à corda na sala iluminada a gás. Em Junho de 2007, quando o Hamas tomou o poder após um combate com a Fatah que fez mais de 100 mortos, Lulu, Mimi e Nunu encavalitaram-se no sofá para mostrar as fotografias do casamento dos pais, e antes, e depois.

Voltámos às fotografias agora, e lá estava Ayman, bolseiro de Farmácia nas Filipinas, lá está Heba, de longos cabelos brilhantes, as meninas bebés, pestanudas, Lulu e Mimi cheias de caracóis, como o pai. E agora Nunu, a pequenina, já tem sete anos e menos dois dentes à frente. Como estão os teus túneis?, pergunta-lhe Ayman. E ela ri, e esconde-se no pescoço dele.

As meninas dormem em duas camas encostadas como se fosse uma grande. De manhã só se acham prontas depois dos caracóis estaram bem puxados para trás, e com uma fita.

Quando vêm ter com os pais, ficam com um braço à volta deles, ou meio sentadas no colo. Numa das noites em que não havia luz, estavam a brincar no patamar do vizinho que tem gerador. Em Al Zahra City, quem tem água oferece água, quem tem gerador oferece luz. Havia dezenas de meninos. Nunu, com os seus olhos de chinesa a rir, tomava conta de um ainda com fraldas.

Andam as três ansiosas por um irmãozinho. Os pais estão a tentar. Até tentaram na guerra. Uma das coisas que Ayman descobriu na guerra é que Heba não tem medo de morrer. Os tanques a dispararem e ela a estender roupa. Toda a gente colada ao chão e ela a arrumar a casa. Chegou o dia de tentar e qual guerra.

Quando lá estive, depois da guerra, as meninas saíam para a escola de manhã e eu saía com Ayman. Heba passou dias a inventar bordados da Palestina. Borda tão bem como cozinha, mesmo num pequeno fogareiro, mesmo à luz de um candeeiro a gás, compotas ou frango com sementes de sésamo. As meninas ajudam sempre.

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