Jan 23, 2009

Viagens com bolso

A promessa

Vi Obama tomar posse num quarto em Jerusalém. Gosto deste quarto. Foi nele que dormi a primeira vez que aqui aterrei. Vim do aeroporto ao amanhecer, tudo parecia prestes a explodir. Bombistas suicidas entravam em autocarros e cafés, o exército israelita entrava nas cidades palestinianas, a morte saía muito à rua. Era Abril, 2002. Subi os degraus com a mala, havia um jardim, uma casa antiga de pedra. Deitei-me a ouvir – seriam tiros? E o dia seguinte nunca mais acabou, até hoje.

Voltei muitas vezes, sem nunca mais dormir neste quarto, e agora não pedi, foi um acaso.
E portanto às seis e meia da tarde em Jerusalém liguei a CNN para ver Obama. Tinha acabado de voltar de Ramallah, e tanta gente estava agora a fazer isto, ligar a televisão para ver Obama – em Jerusalém, Belém, Hebron, Nablus, Jenin, Ramallah.

Gaza menos. Falta electricidade.

Domingo à noite Ayman ligou de Gaza a perguntar se eu podia levar um rádio, um pequeno AM-FM a pilhas. Sem electricidade não há televisão nem Internet, mas pode haver rádio, pelo menos com pilhas que se possam carregar naqueles momentos de tréguas em que a energia volta. Agora uma pilha aqui é um luxo, dizia Ayman.

Um rádio a pilhas e é o mundo.

E mais? Álcool. Betadine. Pensos. Algodão.

Segunda-feira fui à rua Salahaddin, que tem tudo, e tem mesmo café. O rapaz da loja mostrou-me um rádio chinês, tão chinês que o metal parecia de plástico. E com notável falta de sentido comercial insistia que eu levasse aquele, quatro vezes mais barato que o da Sony. Quando a Sony ganhou, já o rapaz me tinha explicado porque é que Obama não vai fazer qualquer diferença. É porque “eles” só se importam com a segurança dos israelitas, dizia ele. “Eles” são os americanos.
Depois fui à farmácia. A versão Jerusalém Leste de Betadine é Polydine, made in Israel.

Agora tenho tudo, só ainda não entrei em Gaza. Se Israel continuar a deixar entrar oito jornalistas por dia, conto entrar lá por Junho. As acácias e os jacarandás que sobraram já vão estar floridos.

Antes ainda do discurso de Obama, quando Aretha Franklin estava a cantar, telefonei a um entrevistado em Ramallah. Mas a canção foi curta, e ele queria mesmo não perder Obama.

E então deve ter ouvido como eu as vezes que Obama falou da liberdade. Foram três vezes:
“… essa grande dádiva da liberdade...”

“… o que homens e mulheres livres podem conseguir quando a imaginação se junta ao objectivo comum, e a necessidade à coragem...”

“… essa promessa de Deus segundo a qual todos são iguais, todos são livres e todos merecem uma oportunidade de lutar pela sua medida completa de felicidade.”

Parece-me um bom programa para a reconstrução de Gaza. É exactamente disto que se trata, mesmo dando como certo que Obama não estava a pensar em Gaza.

É bom que no dia em que esta crónica saia eu já não esteja neste quarto.

(Crónica publicada no Ípsilon de 23 de Janeiro)

1 comment:

Carlos Azevedo said...

Essa região é uma manta de equívocos que não serão desfeitos por nenhuma dessas partes, até porque não há só 2 partes.
Os árabes, como é costume secular, dividem-se.
Os judeus, como é costume secular, são intransigentes.
E fazem-se cobrar muito caro pelos crimes nazis.

Mesmo quando as notícias aqui e no mundo estão a começar a tornar-se mais fraquinhas sobre o que se passa aí, melhor oportunidade para v. nos dar a ver para além do vulgar, como tem feito mt bem.

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