Jan 22, 2009

Harb e Al-Sheikh no coração das trevas

Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, em Qalandia

Na berma, entre o lixo, caminha um homem elegante. Vem das aulas, onde ensina Shakespeare, Joyce, Conrad. Como é que se fala de Conrad a um palestiniano de 20 anos encurralado?

“Não é muito difícil”, responde Ahmad Harb, romancista e professor de literatura comparada na Universidade de Birzeit, em Ramallah. “A ênfase de Conrad é na situação criada em África pelo colonialismo, e é fácil os alunos criarem uma relação com isso.”

Universitários, maioritariamente raparigas, a lerem o apocalipse de Conrad lá nas montanhas além de Ramallah – não é o cliché ocidental sobre os palestinianos.

E Shakespeare? “Em peças como ‘Otelo’, ‘A Tempestade’ ou ‘O Mercador de Veneza’ há a cultura do Ocidente e a cultura do Oriente, a terra do outro. A imagem do outro nesses livros está relacionada connosco. Há muitos estereótipos. Otelo é retratado como um impulsivo, destrutivo, emocional. É a imagem orientalista do árabe.”

Mas não é preciso procurar o contexto palestiniano, trata-se de ensinar literatura, ressalva Harb, sentado num bocado de cimento no meio do “checkpoint” de Qalandia.

O sol põe-se atrás do muro que marca a separação entre Jerusalém e a Cisjordânia.

Cheira a fumo, a podre e a escape de automóvel. Algumas pilhas de lixo estão a ser queimadas e uma coluna negra sobe. Há entulho, arame farpado, uma torre de vigia danificada, outra intacta.

É nessa que estão os soldados a controlar a vida cá em baixo. Para dois milhões de palestinianos, Qalandia é a porta para Jerusalém, e quem a abre e fecha são os israelitas.

Depois um desses palestinianos vê na televisão 1300 palestinianos de Gaza a serem mortos sem poder fugir ­– e mergulha no “Ulisses” de Joyce?

“A dificuldade deve ser ensinada”, insiste Ahmad. “Damos ‘O Retrato do Artista Enquanto Jovem’ e por vezes o ‘Ulisses’ ou o ‘Finnegans Wake’ como exemplo da técnica moderna.”

O modernismo é a especialidade deste académico de 57 anos, pai de cinco filhos, que se doutorou em Iowa (EUA) e voltou para onde quer ficar.

Foi um jovem militante comunista, hoje vê-se como “socialista, humanista, independente”. E é a partir desses valores que fala dos últimos anos.

“Abu Mazen [o presidente Mahmoud Abbas] não soube lidar com a situação desde a vitória do Hamas. Agiu como líder partidário e não nacional. É susceptível à posição árabe e internacional e não teve coragem para dizer que tínhamos tido eleições democráticas. Mesmo depois, quando Hamas e Fatah criaram um governo de unidade, a Europa e os EUA lidaram com indivíduos, não com o governo. Que se podia esperar? Nunca apoiei o Hamas, mas estou disposto a aceitar a escolha do povo.”

E recusa-se a criticar o Hamas pela guerra. “Tudo isto vem da ocupação. Israel não tem qualquer intenção de fazer uma paz justa. A partir do 11 de Setembro perceberam que a resistência palestiniana podia ser vista como parte do terrorismo internacional e a nossa luta é diminuída por isso.”

A degradação aqui à volta resume a posição palestiniana em 2009.

“É o pior momento da nossa causa. Nunca vi nada como o que se passou em Gaza. As possibilidades de reconciliação entre israelitas e palestinianos são ilusórias.”

Do outro lado da rua, há um Gandhi pintado no muro. E de repente Harb identifica o condutor de um pequeno carro vermelho. “É ele, Abdul-Rahim.”

São colegas em Birzeit.

Um estado
O desportivo Abdul-Rahim Al-Shaikh estaciona e atravessa a poeira do “checkpoint”, onde combinara encontro com o Público.

Poeta e professor de Filosofia e Estudos Culturais, faz parte de uma nova geração de académicos. Doutorado nos EUA e pós-doutorado em Berlim, tem uma tese sobre Mahmoud Darwish – o poeta palestiniano que morreu em 2008 – e tanto cita Edward Said como Bertolt Brecht ou Hannah Arendt.

Mas quando teve uma “lecture” na Universidade de Columbia, Nova Iorque, aconteceu-lhe o que acontece a quem anda entre estes destroços: não passou daqui.

“Nasci em Jerusalém, na Via Dolorosa, e os israelitas não me deixam ir a Jerusalém porque tenho cartão de identidade palestiniano.”

O sol está raso. Um menino de cara suja vem vender “chiclets”, outro esfrega o pára-brisas de Abdul-Rahim apesar dele dizer que não.

Há mulheres ao volante de velhos carros dos anos 80, táxis colectivos cheios de mulheres com crianças, homens a fumar encostados, sem emprego.

Abdul-Rahim é descendente de agricultores que perderam a terra quando Israel foi fundado. “A minha mãe não sabe ler, e o meu pai é um intelectual amador. Era tão apaixonado pela causa palestiniana que seguia as notícias em diversas estações e ficou muito político.” Aos 35 anos, este é o filho pródigo, o bom aluno que foi e voltou.

Agora, a família vive a Norte de Jerusalém, cercada “de três lados e meio” por colonatos. “Entramos e saímos por túneis, como ratos.” Tornou-se tão insustentável que Abdul-Rahim se mudou para Ramallah para não chegar tarde à universidade.

A sua especialidade é “a transformação do discurso palestiniano nos anos pós-Oslo”. Ele vai explicar, mas o sumário será: como os palestinianos desistiram de ter “um Estado para todos”.

“Foi em 1974, quando Arafat foi à ONU e fez o discurso do ramo de oliveira e da arma. Até aí, a causa era um estado democrático e secular em toda a Palestina, como antítese do sionismo. O programa palestiniano original era um estado para árabes e judeus, e não a réplica do sionismo – é a tese de Edward Said. E em 1974 a OLP mudou isto. Começou a defender a Autoridade Palestiniana, um estado ao lado de Israel. Acredito que aí nos tornámos uma réplica do sionismo. Foi uma viragem enorme. E levou 20 anos, até ao Acordo de Paz de Oslo, para entender como foi devastadora.”

A identidade, diz Abdul-Rahim, é “terra, povo e a narrativa desse povo”. Em 1948 e 1967 esse povo perdeu a terra e em 1974 mudou a narrativa. “A OLP deixou de falar de 1,3 milhões de refugiados que estavam fora.”

E que dificilmente poderão voltar, num estado em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, onde já não há espaço.

Na causa original, crê Abdul-Rahim, “todos os cidadãos teriam os mesmos direitos, independentemente da religião”. Seria o fim de um estado para os judeus, seria mudar a História ­– mas este académico acha que não é irrealista. “Temos um modelo, a África do Sul, que acabou com o seu regime de apartheid.” E onde está um Mandela? “”Não precisamos de outro Mandela.”
Mas como, quando Israel faz e o mundo segue, como se viu nesta guerra em Gaza? “Os judeus também são vítimas do sionismo. Concordo com Azmi Bishara [líder árabe israelita]: ele tenta tirar Israel do seu estúpido paradoxo, que é ser democrático e ser judeu. Não é possível ser as duas coisas. Ainda agora os dois maiores partidos árabes foram excluídos das eleições israelitas.”
E como vê Abdul-Rahim a divisão palestiniana? “É uma liderança cancerosa, com tantas facções na Fatah e depois os do exterior.” E os do Hamas, e os na prisão.

Enquanto milhões de palestinianos continuam no “checkpoint”.

“Qalandia era uma rua aberta entre Jerusalém e Ramallah”, diz Abdul-Rahim de repente. “E íamos daqui para Jericó...”

(publicado a 22 de Janeiro na edição impressa do Público)

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