Toda a gente quer falar e todas as histórias são inaceitáveis. Crianças que perderam a família, que ainda têm balas na cabeça, que foram comidas por cães
Reportagem
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza
Almaza perdeu 30 pessoas. Agora está de pé nos destroços. Onde vive? "Ali." Aponta um plástico com paus a fazer de tenda, e sorri. Homens, mulheres e crianças sobem e descem entre bocados de cimento com ferros retorcidos, no bairro de Zeytun, sul da Cidade de Gaza.
O nome dela quer dizer "diamante" e está certo. Uma menina de 13 anos com os lábios muito gretados, demasiado pequena e demasiado magra, que brilha no meio das coisas.
"Estávamos em casa quando começaram a atirar bombas", conta ela, enquanto as outras crianças correm para se juntar. As mais pequenas estão sujas, descalças, com feridas, crostas, problemas nos dentes e nos olhos. Almaza fala com as mãos, a olhar nos olhos.
"Depois das bombas, houve um silêncio. Até que os soldados começaram a martelar para abrir um buraco. Apareceram a apontar uma arma para nós, e disseram-nos para sair." Mostra as ruínas do outro lado da rua.
"Mandaram-nos ficar na casa que havia ali, mas quando atiraram bombas lá, disseram-nos outra vez para sair e ir para a casa do lado." Onde agora também só há ruínas. "Ficámos lá três dias sem pão, sem água. Para rezar, limpávamo-nos com terra. Nem os bebés tinham comida. O meu irmão saiu para ir buscar lenha para fazermos pão, caiu um míssil e ele morreu. Saí com a mulher do meu irmão para o ir buscar e dispararam contra nós. O bebé da minha cunhada morreu nos braços dela. Voltámos para casa e estavam a atirar mísseis. Gritei à procura da minha família. A minha mãe, as minhas irmãs, os meus tios, toda a minha família estava morta no meio do fumo."
Almaza e a cunhada fugiram a correr, no meio dos disparos. "Éramos umas cem pessoas a correr, algumas feridas, com sangue." Até encontrarem uma ambulância. O pai de Almaza sobreviveu, mas está ferido.
Depois da oração de sexta-feira, em Zeytun, toda a gente quer falar, e todas as histórias são inaceitáveis.
Muna desenhou a mãe a morrer. Amal tem uma bala ainda na cabeça. Shahad foi encontrada morta, duas semanas depois. Tinha um ano e meio.
Do checkpoint à cidade
A destruição de Gaza começa logo a seguir ao checkpoint, para quem vem de Israel. Uma, duas, três, quatro escolas esburacadas ou desfeitas - e o carro ainda só andou uns quilómetros.
Outras coisas esburacadas ou desfeitas a caminho da Cidade de Gaza: um depósito de água; casas à esquerda, casas à direita, um quarteirão inteiro; pomares e plantações; canalizações de água; postes de electricidade; uma mesquita, outra e outra.
Um dos primeiros bairros após a fronteira tem 15 prédios, cada um com 18 apartamentos. Todos estão furados por disparos de tanques ou parcialmente incendiados. As portas de ferro nos pisos térreos parecem arrancadas por um furacão.
Durante uns minutos, é como se toda a gente tivesse desaparecido, mas depois um morador, Samir, de 52 anos, surge entre dois prédios e aponta para o cimo da colina: "No primeiro dia da guerra, atingiram com três mísseis aquele depósito da água que bebemos". É um depósito circular de cimento e o rombo vê-se à distância. "No dia seguinte, atingiram-no outra vez. Não tivemos água durante toda a guerra..."
"No meu bairro, ainda não há água nem electricidade", interrompe um homem com um saco de pão, de chinelos e sem meias. Chama-se Nassur, tem 43 anos, uma filha e vive num andar com vista para o tanque de água. "No primeiro dia da guerra, dois aviões F16 atingiram-no. Toda esta zona abanou. Uma rapariga de 18 anos morreu, a cabeça dela ficou esmagada."
Agora aparece gente de todos os lados, rapazes, crianças descalças, mulheres. Estão a voltar dos abrigos improvisados nas escolas da UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinianos. "Toda a gente aqui fugiu", diz Nassur. "A semana passada não havia ninguém."
Um rebanho de ovelhas vem das traseiras e desce para a estrada, com burros no meio, e crianças a pastorear.
Continuando na direcção da Cidade de Gaza, muitas casas têm rombos ou partes queimadas, outras parecem viradas do avesso, ou foram reduzidas a uma carcaça.
Em Atattra, uma das zonas de maior destruição, ainda estão frescas as marcas dos tanques, que demoliram árvores e, pelo caminho, arrastaram canalizações de água e esgoto. Há tubos a sair do entulho. E mais à frente um poste de electricidade com os fios todos pendurados e um carro de reparações ao lado.
Uma escola do governo tem um buracão na parede. "Foi no segundo dia da guerra", conta Sami, de 35 anos, cinco filhos, que vive do outro lado da rua. "Ouvimos os aviões e depois eles lançaram pára-quedistas e bombas de fumo para não vermos o que se passava. Usaram a escola para disparar de lá e depois atingiram a escola do ar quando se foram embora."
Também atingiram a casa de Sami, e é isso que ele quer mostrar. Toda a gente quer mostrar o que perdeu. "Não somos Hamas, somos civis. Cultivamos a terra, laranjas, clementinas, limões..." Vêem-se da estrada.
"A minha casa foi muito atingida, a minha casa!", grita uma mulher com um dente de ouro. Depois senta-se na berma, sozinha.
Mais à frente, outra escola governamental com dois buracões de lado e a fachada queimada. Casas sem a parede da frente ou sem um andar. Miúdos a apanharem ferros, paus. A correrem entre o entulho, que pode esconder munições por explodir.
Morangos nas ruínas
O grande orgulho local são os morangos, grandes e doces. Alguém oferece uma mão-cheia, enquanto mulheres penduram roupa lavada em bacias no chão, com um pouco de água. Homens escavam canalizações. Passam dois carros dos Médicos do Mundo.
Na outra ponta de Atattra, há grandes espaços vazios cobertos de destroços que eram casas. Uma aguenta em pé, reduzida ao esqueleto, enquanto Nadi desce a rua com dois garrafões. "Ainda não temos água, fui buscá-la a uma outra casa." Aos 58 anos, é responsável por uma família com muitas crianças. Umas dez cirandam à volta dele.
"Até as minhas ferramentas de cultivar a terra ficaram queimadas", diz ele, mostrando a ruína da sua casa. "Somos agricultores. Temos tomates, pepinos, batatas. Os bulldozers pisaram a minha terra quando estava quase a apanhar o tomate." Aqui morreram mais de 30 pessoas.
No bairro de Salatin, mais buracos, carcaças e uma mesquita onde o disparo de um tanque entrou pela frente e saiu por trás.
Pouco adiante, uma gigantesca montanha de entulho com mulheres, raparigas e meninas sentadas em cima. São a família do homem que agora se apresenta, Khamiz Sultan, de 50 anos.
"Esta era a nossa casa, um prédio com seis andares e um supermercado por baixo." 15 pessoas viviam lá dentro. "Os israelitas avisaram-nos para sairmos das nossas casas rapidamente sem levar nada. Fomos para as escolas da ONU, a pé, durante uma hora e meia, com as crianças." Aponta para o entulho. "Aquelas são as minhas netas. Ainda estamos a dormir na escola. A ONU está à procura de casas para nos pôr, mas não é fácil."
Além do supermercado, tem terras? "Não tenho mais nada, só Ele." Vira o queixo para o céu.
Dois rapazes de barba descem a rua com papéis cheios de apontamentos. "Somos de uma organização que pertence ao Hamas. Estamos a apontar as perdas das pessoas. O Kuweit e os Emirados mandaram ajuda de emergência para darmos entre 500 a 1000 dólares a 500 famílias, em Beitlahya." Esta zona do Norte da Faixa.
Cenário de terramoto
Já perto da Cidade de Gaza, homens a vender pequenos fogões a petróleo para cozinhar, porque falta gás e electricidade, e bidões de gasolina, impossível de encontrar nas bombas até ao cessar-fogo.
Os muezzin chamam para a oração de sexta-feira, que é a principal da semana. As ruas estão agora desertas. Mesquita a mesquita, atravessando a cidade, milhares de homens a rezar. Ao lado, atrás ou em frente, há sempre edifícios destruídos, alguns civis, outros ligados à administração do Hamas.
Zeytun fica no sul da cidade e é um cenário de terramoto. Centenas de homens rezam ao ar livre, sobre os destroços, como se fosse uma mesquita. O imã está em frente a eles. Um camião de ajuda humanitária da Turquia carregado de farinha, feijões e açúcar aguarda o fim da oração. Os condutores também rezam ao lado do camião, ajoelham-se nas pedras.
E o psicoterapeuta Ehssan está entre os fiéis.
Quando a oração termina, vai falar com Muna, a menina que desenhou a mãe a morrer. Vai falar com Amal, a menina que foi com uma bala na cabeça ao hospital e voltou, porque é uma operação complicada e o caso dela podia esperar.
E é Ehssan quem mostra no telefone a fotografia da bebé de um ano e meio chamada Shahad, com as pernas comidas por cães. "Ficou aqui 14 dias depois de morrer, porque as ambulâncias não podiam passar.
(publicado em 24 de Janeiro na edição impressa do Público)
Jan 24, 2009
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5 comments:
engolir em seco
e esperar o próximo relato.
m
Obrigado Alexandra.
É muito importante que estes relatos e estas vozes nos cheguem.
Bom trabalho.
A
Sente-se que este relato impressionante foi feito com a angustia de quem sabe que vai encontrar o pior, e mesmo assim o pior é afinal ainda pior.
Não é altura para análises profundas perante este cenário, mas gostaria que a Alexandra mais tarde voltasse à "ajuda" dos Emirados e do Kuweit.
Se algumas mensagens ficam sem comentários, não é por falta de leitores. Se ficamos em silêncio é por pudor. Mas se nos fizer o favor de continuar a escrever, comprometemo-nos a continuar a ler. É o compromisso possível.
Um abraço.
Não sou pró Israel nem pró Palestina. Sou "pró Paz", e espero que este excelente trabalho jornalístico possa coumprir a sua parte na resolução deste estúpido conflito.
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