Aviões israelitas lançaram papéis a anunciar nova "operação" em Gaza, por causa do soldado morto. Os habitantes esperam mais bombardeamentos
Reportagem
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza
O céu começa a rugir à vista de Rafah. Uma fila de mulheres com crianças sobe uma duna, até um tanque de água da ONU. As mulheres estão de preto, a areia brilha, dourada. Depois, durante umas centenas de metros, ninguém. Dunas, baldios e os F16 lá em cima, sobre o Sul de Gaza.
O céu começa a rugir à vista de Rafah. Uma fila de mulheres com crianças sobe uma duna, até um tanque de água da ONU. As mulheres estão de preto, a areia brilha, dourada. Depois, durante umas centenas de metros, ninguém. Dunas, baldios e os F16 lá em cima, sobre o Sul de Gaza.
Entrando na cidade, o barulho dos aviões israelitas desaparece. No mercado há laranjas pequenas e doces - e morangos grandes e doces como já não há na Europa -, mas o movimento é fraco. A fila para o gás está sem homens, só com botijas. Vêem-se carros, mas não engarrafamentos. E à medida que a fronteira com o Egipto se aproxima as ruas vão ficando desertas, até aquele silêncio de quando se espera qualquer coisa.
Eis a fronteira. Um pedaço de muro e montes de terra a formarem uma espécie de trincheira do lado palestiniano. É nesses montes que se escondem os túneis através dos quais Gaza se abastece, para contornar o bloqueio. Na véspera, a aviação israelita bombardeou vários para leste que, segundo os militares, pertenciam ao Hamas e eram usados para trazer armas.
Este raide foi uma das respostas à bomba que de manhã matara um soldado e ferira três, a meio da Faixa de Gaza, do lado israelita da fronteira. Israel disse que um grupo de palestinianos era responsável pelo ataque. Numa primeira retaliação matou um militante do Hamas que conduzia uma mota em Khan Yunis e teria sido o executor. Além do militante matou também um agricultor.
O grupo que terá reivindicado o ataque é desconhecido em Gaza, e ontem, entre a população, havia quem discutisse a hipótese de ser uma bomba antiga - pois como conseguiria o homem da moto chegar ao lado israelita, cheio de soldados em alerta?
"O que as Forças de Defesa de Israel fizeram hoje não foi uma resposta, mas uma acção preliminar", avisou entretanto o primeiro-ministro, Ehud Olmert. "Uma outra resposta a este sério incidente será dada."
E assim, depois dos dois homens mortos em Khan Yunis e dos túneis bombardeados em Rafah, Gaza está à espera do que possa acontecer.
Aviso do céu
Ahmad, 53 anos, sete filhos, e barbas brancas, vive ao pé de um dos túneis bombardeados e teve que fugir de casa. Agora está nesta rua, perto de outros túneis, que é onde tem a sua loja.
"Eram umas duas e tal da manhã", conta, enquanto empilha botijas vazias de gás numa camioneta. "Estávamos a dormir e todos os vidros explodiram. Até chegaram à minha cama! Agarrei na família e fugimos. Fomos para um olival do meu tio, que tem lá sítio para nos abrigarmos."
De manhã, quando tudo lhes pareceu tranquilo, voltaram a casa.
"Mas esta noite esperamos mais, os israelitas já ameaçaram. Eles atiraram papéis do céu."
Mustafá, um rapaz de 17 anos, diz que os papéis avisavam as pessoas para saírem das suas casas. "E para esperarmos em breve a operação Flor Vermelha." Tem algum papel desses? "Não, o Hamas apanhou--os todos, e destruiu-os, para as pessoas não terem medo."
Que pensa o barbudo Ahmad da morte do soldado? "Sou contra todas as formas de violência." Mustafá dá a sua opinião antes que alguém não a peça: "Eu sou a favor desse ataque."
Mais para leste, as últimas casas antes dos túneis bombardeados parecem completamente desertas. Não se vê vivalma. Depois, dobrando uma esquina, um rapaz sentado. Chama-se Sami, tem 18 anos, vive aqui. "Ouvimos a primeira explosão pelas duas da manhã", confirma ele.
"Acordámos e havia gente a fugir das casas."
Ainda mais para leste, uma mulher de casaco preto até aos pés e lenço na cabeça, a andar até à última casa antes da fronteira. "Vivo aqui", diz, sorridente. Chama-se Heba, tem 25 anos, é uma recém-casada. "Estávamos aqui ontem à noite, e pelas duas e um quarto da manhã ouvimos uma bomba de repente. A casa abanou toda. Levantámo-nos, mas a seguir houve mais explosões, e mais fortes. Depois ouvi muita gente a correr e gritos."
O bombardeamento terá durado uns 20 minutos, calcula. "Mas eles vão voltar, claro." Ainda não sabe se abandonam a casa. Gaza é uma terra de refugiados, alguns já deixaram duas casas, toda a gente tem relutância em partir. Que pensa Heba do ataque aos soldados? Volta a sorrir, cortês, hesita. Depois diz: "Sou contra essas provocações, neste momento."
Uma outra mulher aproxima-se. Veio ver dos pais, que moram aqui, mas encontrou a casa vazia. "Fugiram, devem estar com alguém de família, mas ainda não sei quem."
De volta ao centro de Rafah, as ruas vão ganhando vida esquina a esquina, à medida que a fronteira fica para trás. Bandos e bandos de meninos e meninas a virem da escola. Os que andam em escolas do governo têm fardas verdes. Todas as meninas usam fitas brancas nos totós e nas tranças. Estas bermas, cheias de centenas de crianças, são a visão mais viva e alegre de toda a Faixa. Frente ao campo de futebol há uma grande escola da ONU, a esta hora com o bruá de muitos alunos. Quanto ao campo, levou com um míssil.
O agricultor era comunista
Subindo para norte, a zona logo a seguir a Rafah é Khan Yunis. Pelo caminho vêem-se várias fábricas de cimento bombardeadas. Desde que o Hamas tomou o poder, em Junho de 2007, Israel não permite entrada de cimento em Gaza, e agora, durante a guerra, inutilizou as fábricas locais.
Como por toda a Faixa, flutuam bandeiras verdes do Hamas, mas de repente, numas ruas junto à fronteira onde o soldado israelita foi morto, aparecem duas bandeiras vermelhas a esvoaçarem, bem alto. São da PFLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina), o movimento marxista fundado em 1967 pelo cristão George Habash, um rival histórico de Arafat. Habash morreu há um ano, na Jordânia, mas ainda aqui tem firmes discípulos.
É o caso de Jihad Shain, 22 anos, militante vermelho e filho de militante vermelho. "O meu pai não está em casa, porque foi ao funeral daquele agricultor morto pelos israelitas, que também era da PFLP." Chamava-se Anwar Zaed. "Estava na sua terra, a tratar dos vegetais. Tinha 29 anos e dois filhos pequenos, com um e dois anos."
Aqui, de sua casa, com os vidros partidos, Jihad ouviu a explosão que matou o soldado e feriu três, um deles gravemente. Isso aconteceu pelas oito da manhã, diz. Cerca de duas horas depois começou o bombardeamento israelita em que morreu o militante do Hamas na mota e o agricultor amigo desta família.
"Eles lançaram papéis a dizer que tínhamos que deixar a nossa área e que iam fazer uma operação chamada 'flor vermelha'." E então, que fazem aqui? Não têm medo? "Claro que temos. Mas não queremos abandonar as casas."
(publicado em 29 de Janeiro na edição impressa do Público)
1 comment:
Querida Alexandra,
Somente queria dizer-te que creio que fazes um exelente trabalho.
OBRIGADA!
Obrigada pela humanidade; obrigada por preocupar-te com a verdade; obrigada pela honestidade e valor.
Um abraço
Ana
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