Jan 28, 2009

Queimados com bombas de fósforo branco


(© Mohammed Abed/AFP)
Pesquisas internacionais provam que Israel atingiu civis com estas bombas. Há casos de outras armas não-convencionais, como DIME

Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

Sabah Abu Halima está numa cama da Unidade de Queimados do hospital Al Shifa, o maior de Gaza. É uma mulher de 45 anos, mãe de 10 filhos. Uma cunhada alimenta-a à colher, lentamente. Ela tem o braço direito enfaixado até à mão e queimaduras no pescoço. Mal consegue mexer a cabeça.

"São queimaduras profundas de bombas de fósforo branco", diz o médico Ahmed Mograbi, mantendo-se na ombreira da porta enquanto Sabah come. "Tem 15 por cento do corpo afectado. Transferimos dois feridos mais graves da família dela para o Egipto, uma criança de um ano e uma mulher de 20 com queimaduras muito profundas em metade do corpo, típicas de fósforo. Acho que esse é um caso desesperado." Mas Sabah deverá recuperar: "Está queimada num braço e nas pernas."

As pernas não se vêem por estarem tapadas por um cobertor, enquanto ela continua a comer devagar.

"Chegou aqui de ambulância, trazida de outro hospital", conta Mograbi. "Lá, tinham-lhe limpado a pele e posto ligaduras. Ao fim de três horas aqui, quando tirámos as ligaduras para limpar, saía fumo das feridas e cheirava muito mal, a fósforo."

Sabah acabou de comer. O médico entra para ver se ela pode e quer falar. Ela diz que sim.
O braço queimado é o direito, e a mão tem crostas negras. Mas não é em si própria que está a pensar. "Tenho nove rapazes e uma rapariga. Agora perdi três rapazes e a minha filha." Diz a idade dos sobreviventes: "24, 22, 20, 18, 16, cinco." Os outros morreram com a mesma bomba que a queimou. "O meu marido também morreu. E a minha nora ficou negra, está no Egipto." Quantas pessoas estavam dentro de casa? "Éramos 16."

Aconteceu no segundo dia da guerra, pelas quatro da tarde, conta ela. "Atiraram uma bomba para cima de nós. Houve uma grande luz, depois um fumo muito branco que sufocava, e não me lembro de mais nada."

As bombas de fósforo branco são incendiárias. Podem ser lançadas pelos militares no terreno para iluminar ou criar um ecrã de fumo. Mas estão proibidas pela Quarta Convenção de Genebra quando lançadas em zonas com "concentrações de civis" onde os alvos militares não estão claramente separados. E são sempre proibidas se forem lançadas do ar.

Gaza - um milhão e meio de habitantes numa estreita faixa - é um dos lugares mais densamente povoados do mundo. Israel começou por negar que tivesse usado bombas de fósforo branco durante a guerra, mas perante diversos testemunhos e provas acabou por admitir que o usara, mas não de forma criminosa.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha comprovou o uso de fósforo branco, está a recolher provas para depois discutir com as partes, e não adianta conclusões sobre se o uso foi ilegal.
Tanto a Amnistia Internacional como a Human Rights Watch comprovaram extensamente o uso de fósforo branco e consideram-no uma violação da Convenção de Genebra.

Quando o corpo humano é atingido por uma bomba de fósforo, a queimadura continua até ter oxigénio, por vezes até ao osso. É necessário tratá-la de forma diferente, mas, se os médicos não souberem, os tecidos continuam a ser queimados. Foi o que aconteceu com Sabah.

A família dela cultiva morangos. São agricultores e vivem em Atattra, uma zona do Norte de Gaza das mais atingidas pela guerra e densamente povoada: "Temos muitos vizinhos", diz Sabah. Os sobreviventes foram-lhe trazendo notícias do que aconteceu depois da explosão. "Os soldados israelitas ocuparam as casas e ficaram lá dentro. Estávamos em paz. Agora quem vai alimentar os meus filhos?"

Ainda cheira
O director da Unidade de Queimados, Nafez Abu Shaban, confia na recuperação de Sabah. "No braço são queimaduras profundas, até ao músculo, o que deverá afectar a mobilidade. Mas esperamos que volte a andar." Os casos mais graves com queimaduras destas foram transferidos através do Egipto. Restam dois neste hospital.

"Já não há qualquer dúvida de que se trata de fósforo branco", garante Shaban. "No princípio da guerra recebemos muitos casos de queimaduras e tratámo-los como queimaduras normais, alguns mandámo-los para casa. Mas dias mais tarde alguns voltaram com queimaduras muito profundas, brancas, e alguns morreram, apesar de inicialmente as queimaduras serem muito pequenas. Então começámos a levá-los para a sala de operações, para limpar as queimaduras, e encontrámos material estranho."

Shaban abre um saco de plástico e mostra uma matéria que parece areia com sangue. Sente-se um forte cheiro a fósforo. "Isto são amostras de tecido que retirámos."

Estas e outras amostras foram reencaminhadas para a administração do hospital, para serem reenviados para o estrangeiro. "Achamos que os israelitas estão a usar várias armas não convencionais, e por isso decidimos tirar amostras de qualquer ferimento estranho."

Mas quanto ao fósforo branco, Nafez Abu Shaban está seguro. "Percebemos só na última semana da guerra e muitos doentes morreram porque não sabíamos que era fósforo branco." Quantos doentes? "Não sabemos, porque parte deles terão morrido de ferimentos conjugados, mas presumo que centenas tenham sido queimados com fósforo branco."

E o mesmo pode ter acontecido ou estar a acontecer com feridos por outras armas. "Devia haver peritos internacionais aqui, porque não sabemos o que procurar. Armas tóxicas?, químicas?, radiações? Temos o direito de saber. É a primeira vez que temos tantas vítimas com feridas destas."

"Pelos relatórios, tenho a certeza de que é fósforo branco", diz a cirurgiã inglesa Sonia Robbins, que entrou em Gaza como activista de direitos humanos e veio falar com o director da Unidade de Queimados. "Mas é preciso prová-lo rapidamente", alerta, sublinhando que durante a guerra ninguém pôde entrar, nem documentar o que estava a acontecer. "O perigo é que os casos sejam negados antes de serem provados."

O novo explosivo
Quando a Unidade de Queimados percebeu que havia algo estranho, entraram em campo os cirurgiões.

Especializado em Edimburgo, o cirurgião-chefe Sobhi Skaik está a esta hora reunido com um colega que se especializou na Irlanda, e daqui a pouco vai juntar-se-lhes um cirurgião italiano que trabalha para a Cruz Vermelha. Tudo isto entre transferências de emergência para o Egipto e uma explosão que abanou todo o edifício do Al Shifa onde funciona a cirurgia.

"Tivemos várias pessoas atingidas com fósforo branco", garante Sobhi. "Com outras armas não convencionais também, mas definitivamente fósforo branco, não há dúvida."

O que o faz estar tão certo? "Por exemplo, um doente com queimaduras no corpo de diferentes profundidades, pele, músculos e osso. Isto é típico do fósforo. Continua a arder e a arder, em diferentes camadas do corpo. E há o cheio do fósforo a queimar, podíamos senti-lo."

Sem querer arriscar um número, este cirurgião fala em "centenas de casos" ao longo desta guerra. E vai mais longe: "Numa área de 100 metros quadrados em Gaza pode haver 200 pessoas. As áreas atacadas são densamente povoadas. Portanto, quando se usa fósforo branco em Gaza é criminoso."

Mas além do fósforo, fala no uso de DIME (Dense Inert Metal Explosive), um explosivo novo. O ferido chega com vários buraquinhos no tronco, que parecem ferimentos superficiais, mas em estado crítico. "Abrimos o abdómen e descobrimos muitos danos nos órgãos, perfurações nos intestinos, danos no fígado, sangramentos, e não conseguimos perceber o que está a causar aquilo. Depois de tentarmos reparar tudo, duas horas depois da operação, começa a sangrar e a sangrar, a ponto de não o conseguirmos ressuscitar."

Outro sinal de DIME é aparecerem muitos feridos com as duas pernas amputadas. "Eu vi dezenas", diz Sobhi.

O anestesista noruegês Mads Gilbert, que esteve a trabalhar com estes médicos do Al Shifa durante a guerra, confirma: "Vimos muitos casos indicativos de DIME e temos vários documentados", disse ao PÚBLICO, por telefone, da Noruega.

Gilbert esteve com o seu colega Erik Fosse em Gaza até 10 de Janeiro. Reconhecem o DIME pela "presença de extensas amputações e ferimentos do tamanho de ervilhas".

Mas "as mais importantes armas ilegais que Israel tem usado", remata Gilbert, "são o cerco, o bloqueio, e o bombardeamento indiscriminado de civis".

(publicado em 28 de Janeiro na edição impressa do Público)

3 comments:

carlos ruão said...

alexandra,
sigo as tuas crónicas por simples razão de vida.
estive para te escrever várias vezes.
não aconteceu.
viajo contigo todos os fim-de-semana pela coluna do Ypsilon.
essencialmente, mas não só.
tens uma notável visão do mundo.
obrigada por tudo.

ps: «ela adormeceu com a porta aberta, como uma árvore única no meio de um descampado» musil.

c.

Carlos Azevedo said...

Israel teima em perder as suas razões, com a política exterminadora de que sempre se reclamou vítima (e foi) nos idos da Guerra de 39-45.

O facto de o Hamas ser um sucedâneo nazi, sobrevivendo pelas armas e desprezo pelo povo que deveria defender, não justifica a utilização de armas insidiosas que evidentemente só fazem vítimas entre inocentes.

Ana P said...

Obrigada por nos estares a dar o testemunho, desse povo que quase não tem voz neste mundo ocidental.
É uma vergonha que Israel continue a gozar de tal impunidade.
Por isso é cada vez mais importante relatar o que se passa do lado Palestiniano, mesmo que não seja "notícia", não deixa de ser inadmissível.