Feb 16, 2009

O quarto das filhas



Muitos israelitas só viram a dor em Gaza quando o médico Izzeldin Abuelaish telefonou para a televisão a pedir ajuda. Três filhas suas acabavam de ser mortas por um tanque israelita. A Pública foi ao quarto onde elas morreram e ao hospital de Telavive onde o pai trabalha.

Alexandra Lucas Coelho, em Telavive

Sexta-feira, 16 de Janeiro
Em Telavive, o jornalista Shlomi Eldar está sentado no estúdio do Canal 10 enquanto a pivot apresenta as notícias.
A guerra de Gaza dura há três semanas e os jornalistas estrangeiros estão impedidos de entrar. Eldar fala árabe, é o repórter que cobre "temas árabes" e tem entrevistado habitantes de Gaza ao telefone. Um dos interlocutores regulares é o médico palestiniano Izzeldin Abuelaish, que vive entre Gaza e Telavive, onde trabalha num hospital.

Eldar conta entrevistá-lo justamente hoje, pelo que tem o telemóvel ligado.

O que os espectadores israelitas vêem a seguir é uma rara sequência em televisão. A pivot, perplexa, passa a palavra a Eldar. Ele agarra o telemóvel e põe-no em alta-voz. Ouve-se um homem desesperado, a chorar, a gritar. "Shlomi, eles mataram as minhas filhas!" Eldar vai explicando aos espectadores que aquele homem é um médico, que trabalha em Telavive há anos e tem oito filhos. Do outro lado, o homem grita, em agonia. "Shlomi! Ninguém consegue chegar até nós!" O jornalista pergunta onde fica a casa, que talvez possa ajudar, mandar uma ambulância.

Isto prolonga-se por quatro minutos, quatro longos minutos de televisão. Até que Eldar retira o auricular e sai do estúdio. Uma câmara segue-o, enquanto ele contacta o exército. E consegue que uma ambulância vá ter com Izzeldin Abuelaish.

Em alguns dos vídeos que se podem ver no YouTube, o médico palestiniano aparece a beijar a mão da sua filha Shada, deitada numa maca, ferida num olho e na mão. Vêm para o hospital Tel Hashomer, em Telavive, onde Abuelaish trabalha. Juntam-se médicos, repórteres, uma multidão que seguiu o drama em directo.

Agora Shada já está na cama, Abuelaish faz-lhe festas, chora, pergunta: "Porquê? Porquê nós?" Médicos israelitas abraçam-no, choram com ele.

E então uma mulher, mãe de um soldado, desata a gritar-lhe que o exército não se enganou, que ele deve ter armas em casa e por isso é um alvo, e grita, grita, enquanto a multidão à volta assiste em silêncio.

Talvez outros pais e mães israelitas tenham pensado ou querido pensar o mesmo, barricados em si próprios, incapazes de ver um pai do outro lado.

Mas o primeiro momento em que muitos israelitas conseguiram ver a dor em Gaza foi este, a dor em directo de Izzeldin Abuelaish. Uma dor entre muitas outras, mas que furou o cerco e chegou à gente nos sofás, antes de jantar.

Para Israel, a guerra do Líbano em 2006 foi um desaire, e a guerra de Gaza veio insuflar o orgulho nacional, a certeza de que o Estado judaico pode e deve defender-se das ameaças, que se concretizavam nos rockets do Hamas. Por isso, quando Israel começou a bombardear Gaza, só a esquerda radical - para os parâmetros israelitas - foi contra. E, durante semanas, a grande maioria da população continuou a apoiar o que os militares chamavam "operação".

O historiador israelita Tom Segev disse à Pública que o drama do médico que perdeu as três filhas foi o momento em que muita gente disse: "OK, talvez baste."

Segunda-feira, 26 de Janeiro
Em Jabaliya toda a gente sabe onde fica a casa do doutor Izzeldin Abuelaish.

Jabaliya é o campo de refugiados em Gaza onde começou a Primeira Intifada. Ruelas tortas com buracos, má construção e carros velhos, uma vida fervilhante nas ruas, quatro gerações de refugiados, desde 1948.

Aqui nasceu e continua a viver Izzeldin Abuelaish. Há nove anos a família construiu uma casa nova com quatro pisos, um por cada irmão.

A Pública não precisa de perguntar duas vezes onde é. O primeiro rapaz sabe, entra no carro e vai dando direcções.

A primeira coisa notável é que a casa está isolada, não tem outras à volta. Não é muito fácil alguém esconder-se ao lado ou atrás. É uma péssima casa para quem queira fazer a guerra, o que bate certo. Izzeldin Abuelaish tem sido um convicto partidário da paz. Sendo médico, trabalhando em Israel e falando hebraico, tornou-se numa imagem rara de Gaza para os israelitas - um rosto para a possibilidade de paz.

A segunda coisa notável é que a casa tem buracos no segundo andar quase do tamanho de uma parede. Não são buracos de tiros.

Mohammed, 13 anos, um dos sobrinhos de Abuelaish, aparece a descer os degraus. O seu célebre tio não está, continua com a filha e a sobrinha feridas em Telavive. Mohammed leva os visitantes a um adulto, Saleh, 46 anos, primo de Izzeldin.

"Eu não estava aqui quando a tragédia aconteceu", diz Saleh, subindo até ao segundo piso. Passando a porta, aparece um salão cuidadosamente pintado, com frescos e reboco, aberto para uma cozinha bem equipada. É visivelmente uma casa nova, em que tempo e dinheiro foram investidos. Mas, agora, os móveis estão partidos, há portas no chão, pilhas de entulho e buracos.

E quando Mohammed indica um quarto, a destruição torna-se avassaladora. Duas das paredes, a da esquerda e a da frente, são agora buracões. Por cada uma entrou um obus. As outras paredes e o tecto estão esburacadas e cheias de sangue. Há um autocolante com o nome Barbie numa delas, e depois a própria Barbie, de saia rodada.

"Este era o quarto das filhas, está a ver?", pergunta Saleh.

Vê-se que sim.

Porque há um beliche, agora coberto de destroços. E há uma chinela, um caderno de Economia Internacional, exercícios de inglês, vários CD, uma cruzeta, duas botas com fivelas, um cachecol, um álbum sobre a Turquia, um teclado de computador, um ténis-cor-de-rosa, uma malinha preta, um compasso, um Pato Donald a rir. E tudo está no chão, partido, coberto de cimento, sujo de sangue, com roupa enrodilhada em traves e metal. Cada coisa diz que isto é um quarto de raparigas, da mais nova, que ainda gostava da Barbie, à mais velha, que estudava Economia.

Estavam a aprender a viver sem mãe, morta com leucemia há cinco meses.

Quarta-feira, 4 de Fevereiro
As forças armadas israelitas divulgam os resultados do inquérito "respeitante ao incidente na residência do dr. Abuelaish". As conclusões são que "dois obuses foram disparados de um tanque, causando a morte das três filhas".

Os soldados tinham ficado sob "fogo de atiradores e morteiros" na área de Sajaiya. Identificaram a fonte do fogo numa casa adjacente e dispararam. Depois "figuras suspeitas foram identificadas no último andar da casa do dr. Abuelaish e pensou-se que fossem colaboradores a dirigir o fogo do Hamas". Após "avaliar a situação no terreno enquanto estavam debaixo de fogo pesado, o comandante da força deu ordens para abrir fogo contra as figuras suspeitas". Foi "desse fogo que morreram as três filhas do dr. Abuelaish".

Segunda-feira, 9 de Fevereiro
É noite em Telavive. Izzeldine Abuelaish está sentado com amigos e a filha Shada num pequeno apartamento do hospital Tel Hashomer, onde há anos trabalha. Quando trouxe a filha e a sobrinha feridas de Gaza, este hospital, o maior de Israel, cedeu um espaço onde ficassem durante o tratamento.

Shada tem um olho tapado. Já foi operada duas vezes e espera-se que recupere a visão. Também perdeu dois dedos da mão direita. Está a fazer fisioterapia. É uma adolescente com covinhas, e sorri, a segurar a mão enfaixada, enquanto o pai lhe pergunta: "Então, qual é a capital de Portugal? Lish...?"

Uma amiga da família faz café. Shada vai dormir.

Depois do comunicado do exército, o dr. Abuelaish foi citado na imprensa israelita a dizer: "Todos cometemos erros, e não os repetimos." E em alguns títulos apareceu só: "Todos cometemos erros." Como se tudo estivesse esclarecido.

Mas a frase, diz, foi truncada. "As pessoas dizem que se o exército matou numa situação destas foi sem intenção e que toda a gente comete erros. O que eu digo é que todos cometemos erros mas temos de aprender com eles, não os podemos repetir."

E quanto ao comunicado, os soldados falam de Sajaiya como se fosse a área da sua casa. "Não é, fica a quatro ou cinco quilómetros. Eles misturaram duas coisas. Não havia snipers nem fogo nenhum perto da nossa casa, não há casas adjacentes onde alguém se possa esconder."

E antes e depois do comunicado outras coisas foram mal ditas e misturadas, como a ideia de que Abuelaish vai pedir asilo.

"Nunca pedirei asilo a nenhum país do mundo. Sou palestiniano, até ao fim, a defender os nossos direitos. Também disseram que eu ia emigrar para o Canadá, quando apenas pensei ir dois ou três anos para o Canadá trabalhar."

De resto, o seu cartão de visita diz Jabaliya.

Os pais eram da aldeia que hoje é o rancho de Ariel Sharon. Quando Israel foi criado, refugiaram-se em Gaza, onde há 53 anos Abuelaish nasceu. "Nasci, fui criado e vivo no campo de refugiados de Jabaliya. É o meu povo, as minhas filhas estudam lá, na escola da ONU."

Trabalhar aqui, em Telavive, é algo que vem dos chamados "anos de Oslo", os mais tranquilos do conflito, entre a Primeira e Segunda Intifada. Em 1993, Abuelaish tornou-se "no primeiro médico de Gaza a trabalhar de forma permanente num hospital em Israel".

Já tinha filhos, e continuou a ter, oito ao todo. Organizou a sua semana assim: de domingo a quinta está em Telavive. Quinta à noite chega a Gaza. "Sexta-feira é para os meus filhos. Sábado, das 8h às 12h, ensino lá, na Escola Médica. E das 15h às 21h faço clínica de graça para os meus doentes de lá."

De cada vez que entra e sai de Gaza tem de passar Erez, o mais inexpugnável dos checkpoints, e passa a pé como toda a gente. Tornou-se numa rotina.

Ao longo destes anos de vaivém, continuou a fazer especializações. Genética em Itália e Bélgica, saúde pública em Harvard. Concorreu às eleições palestinianas em 2006 como independente e hoje diz: "Felizmente não fui eleito." Em vez disso, foi um ano para o Afeganistão, como consultor do Ministério da Saúde. "Estava seis semanas em Cabul, duas em Gaza." Também foi consultor, em colaboração com a União Europeia, no Quénia e no Iémen.

A 25 de Dezembro de 2008, uma quinta-feira, deixou Telavive e foi para Gaza, como sempre. "Às onze da manhã de sábado começaram os bombardeamentos. Os vidros rebentaram logo. Na primeira semana, ainda saía para ir buscar comida, mas quando começou a invasão terrestre ficámos fechados, sem bens essenciais como electricidade, gás, água." Os geradores fazem barulho e podiam atrair a atenção."

Vivemos na escuridão, dormimos em colchões na sala e na cozinha, e a minha filha Shada sentava-se à secretária com velas a estudar. Mas estávamos tão felizes de estarmos juntos." Contando as mulheres e filhos dos quatro irmãos no prédio, ao todo 27 pessoas. "E os meus amigos israelitas e os jornalistas telefonavam duas, três vezes por dia."

Até que a 14 de Janeiro um tanque se aproximou. "Foi chocante, como se eu visse a morte. Telefonei a Shlomi [Eldar, o jornalista do Canal 10], expliquei-lhe, ele comunicou com o exército, comecei a receber chamadas para saber onde ficava a casa. Um coronel Mahdi telefonou-me de Erez, pedi-lhe que retirasse o tanque e o tanque retirou! Fiquei tão contente. Isso significava que já conheciam a casa, que estávamos seguros. As crianças celebraram, estavam eufóricas!"

Na noite de quinta para sexta mal dormirarm, por causa dos bombardeamentos, mas o pior parecia ter passado."

De manhã, acordei as crianças, para o pequeno-almoço. Falámos do que elas queriam estudar. Shada queria Engenharia Informática. Mayar, disse: 'Eu estudarei Medicina.' Aya queria Jornalismo. Nenhuma delas alguma vez teve menos de 97 por cento nos testes. E no mesmo dia, Mayar disse: 'Dá os parabéns a Aya.' Porquê? 'Ela teve o período.' Tinha-se tornado madura, aos 13 anos. Comecei a rir, falei com ela. São minhas amigas, as minhas filhas. Depois consegui falar ao telefone com a minha filha que estava com a tia. Perguntei-lhe: 'O que queres estudar, para onde queres ir? Tenho duas ofertas para trabalhar, em Toronto e em Haifa.' Ela disse: 'Quero voar.' Eu disse: 'OK, então podemos ir para o Canadá. Tudo está pronto na embaixada canadiana, mal haja cessar-fogo.' A minha sobrinha de 17 anos tinha vindo dois dias antes ter connosco, correndo o risco, com uma bandeira branca. Disse: 'Eu quero morrer aqui, não quero ficar em mais nenhum refúgio público no campo, é intimidante, é humilhante. Vocês estão no paraíso em comparação com a nossa vida lá, há dez dias que não tomo banho.' E ficou connosco, veio para o seu destino."

Pelas quatro da tarde, Abuelaish tinha uma entrevista marcada com a televisão. Afastou-se dos filhos. Foi quando veio o primeiro obus pela janela do quarto das filhas."

Cortou-lhes as cabeças. O que viu no tecto são partes do cérebro. Eu vi Shada com o olho a vir para fora, e os dedos, e quando entrei no quarto não consegui reconhecer as minhas filhas e a minha sobrinha, sem cabeças. A minha filha mais nova veio a gritar, e a minha sobrinha desceu com os irmãos dos outros andares. E então veio o segundo obus."

Morreram Bisan, 20 anos, Mayar, 15 anos, Aya, 14 anos (as filhas), e Nur, 17 anos (a sobrinha).

"Comecei a contactar com Shlomi. Pedi para as transferir para aqui, e conseguimos salvar os olhos da minha filha e a minha outra sobrinha, que estava ferida. É a luz que há nesta escuridão." A amiga da família que esteve a fazer café há-de dizer, quando ele não estiver a ouvir, que Abuelaish chorou, gritou, mas não perdeu o centro. Continua a ser pai de cinco crianças que não têm mãe. E brinca com Shada, recebe quem o visita, fala, continua a falar pela paz.

"O que fica disto é que o sangue das minhas filhas não foi desperdiçado, fez uma diferença. Para abrir, espero que de forma permanente, os olhos e mentes dos israelitas, para os fazer ver que há outro lado, uma nação palestiniana a viver ali. É isso que me deixa feliz, que os israelitas tenham começado a olhar, porque, se queremos julgar, temos de olhar para fora da nossa moldura. E que tenha sido também uma razão para este cessar-fogo, para salvar vidas."

Voltou a Gaza três vezes. Viu como a guerra "extremou o ódio, a animosidade" e fez tudo voltar para trás. "É doloroso, porque trabalhámos muito para ultrapassar a animosidade. E não há outra forma, temos de aprender a viver uns com os outros. Agora estamos mais longe, mas não há outra alternativa, se não dar a cada um os seus direitos, com justiça."

Abuelaish tem uma ideia concreta e imediata. "Fortalecer a educação das raparigas de Gaza, para que participem nos processos de decisão." Pensou numa fundação, e está aberto a quem quiser ajudar.

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