Feb 9, 2009

O "óptimo vizinho" perde em casa por não ser religioso

Estamos numa guerra mundial entre Ocidente e islão e o casamento civil será o fim de Israel, ouve-se dizer entre os vizinhos de Lieberman
Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, em Nokdim

Lieberman não está, e a sr.ª Lieberman também não. Junto ao portão, há uma guarita com um guarda e uma frondosa árvore. As janelas do primeiro andar estão abertas. Não é uma mansão e não é uma casinha. É uma ampla casa de dois pisos, toda em pedra, aquela pedra de Jerusalém, ocre, branca ou rosa consoante a luz.

Mas isto não é Jerusalém, é o deserto da Judeia, 15 quilómetros para sul. Colinas áridas até onde o olhar alcança, com um soberbo monte em forma de vulcão. Os palestinianos aqui à volta chamam-lhe Montanha do Paraíso. Mas para os colonos é Herodium, a fortaleza-palácio do Rei Herodes.

E portanto, todos os dias Avigdor Lieberman - líder da extrema-direita, estrela das eleições, omnipresente nas campanhas de todos os partidos - sai de sua casa, passa o parque infantil, a amendoeira em flor, a velha caravana estacionada no passeio e as casas de três-quatro divisões dos vizinhos.

Quando chega à cancela de ferro com arame farpado que marca a entrada do colonato, o guarda armado há-de acenar-lhe como a todos os colonos, e então o carro pode acelerar na nova estrada que o Governo israelita construiu, ao longo desta cinematográfica paisagem, com colonatos à direita e à esquerda.

As crianças, todas as crianças
Depois, os minaretes palestinianos, as mulheres de lenço na berma, o checkpoint onde os soldados acenam aos colonos, e em 15 minutos Lieberman chegou a Jerusalém.

Orli e Joseph Boauniche lembram-se de quando ainda não havia a nova estrada, e as famílias de Nokdim - este pequeno colonato da Cisjordânia - viviam em pré-fabricados. São vizinhos de Liberman, três casas à frente.

"Ele chegou antes de nós, é quase um fundador, viveu cinco ou seis anos em caravanas", diz Orli, parisiense mignone e morena, 49 anos. O marido, Joseph, tem 43, e usa a cabeça rapada, com uma kipa. Ela é pintora autodidacta, ele é informático em Jerusalém. Têm cinco filhos.

O normal aqui é "entre quatro e sete filhos", diz Orli. O site de Nokdim abre com a paisagem de Herodium e depois o sal da vida comunitária, crianças, a rir, abraçadas, com pequenas kipas.
A palavra Cisjordânia nunca aparece no site - os colonos dizem "Judeia e Samaria". A palavra colonato também não - os colonos dizem yishuv, uma comunidade judia que se instala na terra de Israel.

Esta instalou-se em 1982, mas só 11 anos depois o Governo autorizou a construção permanente. Muitos colonatos começam "selvagens" e tornam-se "oficiais".

"O yishuv é um protocolo de vida", diz Joseph, que tem um discurso articulado de Churchill a Malraux. "As famílias correspondem a um perfil, querem ter filhos, viver em comunidade e participar no desenvolvimento da região."

Ou seja, no desenvolvimento de Israel na região.

"É como um kibbutz ou um moshav, mas sem um fim agrícola ou industrial comum." Cada uma das 170 famílias tem o seu ganha-pão, em Telavive ou em Jerusalém - muitos informáticos, bancários, professores. E organizam-se em conjunto para educação, saúde, transportes. Em Nokdim há jardins infantis até aos cinco anos, dois médicos residentes e uma ambulância permanente. Nos colonatos da região, maiores, há clínicas, liceus e escolas primárias, e um autocarro que vai buscar as crianças.

Depois, a companhia nacional de autocarros, a Egged, tem uma linha directa oito vezes por dia de Jerusalém para Nokdim. Há cidades árabes israelitas 500 vezes maiores sem um só autocarro directo.

A salvação de Israel
Entre a Cisjordânia e Jerusalém Leste, os colonos israelitas rondam meio milhão. Um terço serão ultra-ortodoxos, um terço religiosos, um terço laicos.

Nokdim é metade religioso, metade laico. Tem uma boa percentagem de russófonos como Lieberman, e judeus vindos de "França, Espanha, Japão, Inglaterra, América, Argentina...", descrevem Orli e Joseph.

A porta deles não está trancada, os vizinhos ajudam-se e visitam-se, partilham shabats e bar mitzvahs, fazem excursões, programam concertos. E vivem numa espécie de constante afirmação política.

"Se o ideal sionista existe, é num yishuv", resume Joseph. "A vontade de estar numa terra que nos pertence há milhares de anos. Há uma americanização, que faz com que o ideal sionista se perca. O yishuvismo é a resposta moderna ao sionismo antigo."

Mais, esta gente vai ser a sobrevivência de Israel: "O mundo que nos rodeia é completamente muçulmano e a maioria vai para um islão radical. E cercado por este mundo Israel não pode funcionar num esquema laico pragmático. Não é como Portugal. O yeshuv vem dizer que podemos ser democráticos sem sermos passivos, que podemos aspirar à paz sem complexos de nos prepararmos para a guerra."

Joseph acha, aliás, que já estamos na terceira guerra mundial, Ocidente-islão.

"O mundo olha para Jerusalém à espera do que vamos fazer", diz Orli. "Temos o objectivo supremo..." Joseph completa: "... da Humanidade! E não podemos fazer isso sem a religião, sem a Torah."

É por isso que Lieberman, um laico, não terá o voto deste casal. Vão votar num partido religioso sionista. Quase iam votar nele, aprovam as propostas de mão nos árabes, mais poder para a polícia, menos poder para o Supremo Tribunal, mas Lieberman quer introduzir o casamento civil em Israel e isso, não. Em Israel só existe casamento religioso, o que significa que um judeu necessariamente só casa com uma judia.

"O casamento civil é a assimilação", explica Orli. "E se começarmos assim vamos ser comidos pelos muçulmanos. Já não teríamos razão de ter um país, podíamos partir para a Austrália."

Sai para mostrar Nokdim (não há um café, há baloiços e escorregas, a nova biblioteca está em construção). E a propósito de vizinhança, quanto a Lieberman, diz o que outros daqui confirmam: "É um óptimo vizinho, com grande sentido de comunidade. A mulher dele é tradicional, a filha é religiosa. São uma grande família, com uma bela educação.

(publicado em 9 de Fevereiro na edição impressa do Público)

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