Viagens com bolso
Crónica
Alexandra Lucas Coelho
Sábado acordei em casa da Lisa. Ela vive em Abu Tor, um bairro de fronteira, com casas antigas, conventos e pinheiros. Na rua dela é Jerusalém Ocidental.
Lisa é uma judia de Nova Iorque, do género de ficar enrolada numa manta a rir da campanha israelita na televisão mas não mais do que cinco minutos. Dos religiosos no espaço sideral, do partido dos pensionistas e daquele momento em que aparece uma cabeleireira a dizer: “Eu quero um homem.” Quer dizer, um homem no governo. E o que Lisa então diz, com cinco segundos de exasperação e um sotaque da rua 4 com a Broadway após mais de 25 anos em Israel, é: “Este país é tão atrasado!”
Nunca a vi perder o sentido de humor, nem aquela espécie de distância em relação a tudo o que não é mesmo importante para ela.
Entre as coisas importantes está escrever e traduzir. O escritório dá para um jardinzinho nas traseiras e tem um tecto tão alto que se fez uma mezanine. Passei muitas noites nesta casa com um cheiro doce, de flores, e aquela mezanine é a minha cama.
Então sábado Lisa ia a um “brunch” em casa de amigos e combinara levar-me. Era um bom passeio, saímos a pé.
Uma das coisas extraordinárias de Jerusalém é como se pode ir no meio da cidade e virando a esquina estar-se num vale dramático, com oliveiras, pinheiros e de repente um cânone de “muezzins” entre colinas, de minarete em minarete. E é “shabat”, os judeus religiosos empurram carrinhos de bebé, há anciãos de fato de treino com garrafas de água, e gente como nós, casaco à cintura porque está quente-quase-Verão, uma garrafa de vinho no bolso.
Abu Tor, Talpiyot, Arnona. Os amigos de Lisa moram numa casa de dois pisos com vista para o vale. Ela dá aulas numa escola de artes, ele é psicólogo. Têm três filhos, um deles soldado. Livros, peças antigas, algum “design”, tudo acolhedor.
Sentámo-nos no terraço a beber “bloody marys”, e era a paz.
Depois veio o “brunch”, sopa de couve-flor, beringelas com pasta de sésamo, pão, queijo, vinho, e começou a guerra.
Eu julgo ter visto em Gaza uma tal escala de violência que, além de 1300 mortos, dezenas de milhares de pessoas estão de luto ou sem abrigo – e não vi nada, porque não estive lá mesmo durante os bombardeamentos, talvez os primeiros alguma vez feitos sobre uma população que não tinha para onde fugir.
E aterro em Israel para passar um civilizado “brunch” a ouvir como toda a população do sul do país está traumatizada com os “rockets” que mataram três civis. Como Israel está a ser agredido pelo Hamas, pelo Hezzbolah, pelo Irão, por todo o mundo muçulmano. Como a Europa está cega porque não vê o que vai sofrer com os muçulmanos. Como Israel está sozinho, ameaçado e ainda assim é paciente e humanista. E como são desprezíveis os israelitas que levam na cara e querem paz, e quando o país estava em guerra não apoiaram o seu governo.
Então, após uma meia hora de batalha, a confecção da beringela pareceu-me fascinante e também falámos de sopas.
Mas eis senão quando Lisa resolveu contar que fora a uma grande manifestação contra a guerra em Telavive e uma miúda pró-guerra lhe tentara pregar uma rasteira. “Uma miúda! Eu podia ser mãe dela!”, dizia a minha amiga, com o seu sotaque da rua 4, perante o silêncio dos amigos.
E voltámos as duas pelo mesmo passeio a falar da vida, mas já sem vinho. Um peso a menos.
viagenscombolso@gmail.com
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1 comment:
Excelente historia.
É o que dá ir jantar com burgueses, sem a mínima noção do que se passa em Gaza.
Mas sabem bem o que sofrem as populações onde caem os perigossimos rockets, que mataram tres pessoas, ohhoh...
E do fósforo branco já ninguem fala, como era de esperar.
Excelente trabalho de reportagem, e até conseguiu encontrar em Israel uma amiga engraçada.
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