Feb 20, 2009

Menos que humano

Crónica
Viagens com bolso


Alexandra Lucas Coelho

Sento-me na cinemateca de Jerusalém e um israelita na mesa à frente diz a um amigo, em inglês: “Em Israel, os palestinianos agora são vistos como menos que humanos.”
A cinemateca é um bom sítio para trabalhar. Há “wireless” de graça, as mesas são confortáveis, as janelas dão para a Cidade Velha, fazem a melhor sopa de abóbora da cidade, e depois alguns filmes têm legendas em inglês (não tive tempo para essa parte).
Suspeito que também seja um sítio onde não predominam os quatro tipos de direita que venceram as eleições israelitas – extrema-direita, direita religiosa, direita-direita e centro-direita. Não se vêem muitos russos daqueles que chegaram há uma dúzia de anos (mas acham que os palestinianos é que cá estão a mais). Não se vêem muitos religiosos (assim de repente, não me lembro sequer de ver “kipas”). Se calhar, há imensos partidários de Bibi e de Livni, mas pelas conversas não parecia.
Na mesa à frente, a conversa era mais para onde emigrar. O homem que tinha dito que os palestinianos agora eram vistos como menos que humanos achava que o melhor país para emigrar era Itália, por causa do sentido de beleza (as mulheres, os homens, qualquer pracinha).
Claro que se nos lembrarmos de Berlusconi – e da televisão italiana –, muitos discípulos de Nani Moretti podem estar agora na cinemateca de Roma a pensar para onde emigrar.
Mas Moretti desesperaria mais em Israel.
A dita esquerda israelita tem sido incapaz de dizer qualquer coisa de esquerda há tanto tempo que quem ainda vota nela já não se lembra do que é a esquerda.
Depois há aqueles que se lembram do que é a esquerda, e portanto são considerados “a velha esquerda”, hoje consciências de um tempo sem consciência, que nunca falarão em emigrar porque sobreviveram ao Holocausto, fundaram Israel e ainda não desistiram do futuro.
Alguns estão já próximos da dita esquerda radical, aquela que é contra o governo numa guerra. Em Israel, ser contra o governo numa guerra não é ser contra o governo, é ser contra Israel, e por isso é que esta esquerda é radical.
Suspeito que o homem na mesa à minha frente fosse um destes radicais. A “velha esquerda” israelita tem idade para se lembrar do que quis dizer na História do século XX “undermenschen”. Foi nesta palavra – sub-humano, menos que humano – que começou o extermínio, antes das câmaras de gás. Porque o extermínio começa quando uma comunidade começa a ver outra comunidade como menos que humana. Foi o que aconteceu com milhões de europeus durante a II Guerra Mundial, e certamente a maior parte deles pensou ter motivos de força maior.
Em Israel, país que há mais de 40 anos coloniza outro povo, quem é que consegue viver com a consciência de que a sua força aérea, metida em F16 de onde não se vêem caras nem corações, matou sistematicamente seres humanos desarmados? Ou se acredita que estavam todos armados ou não se pensa neles como seres humanos. E o resto são histórias da imprensa, apostada em denegrir Israel até com bombas de fósforo.
Mas quando o israelita na cinemateca disse ao amigo que a imprensa não é o discurso oficial, e que na imprensa é onde os palestinianos ainda podem ser humanos, só não fui apertar-lhe a mão porque sou uma europeia constrangida por convenções.
Menos que humano é o olhar do colonizador. Aquilo era um homem.

viagenscombolso@gmail.com

No comments: