Jan 21, 2009

E Ramallah tão longe de Gaza

Reportagem

Alexandra Lucas Coelho, em Ramallah

1. O governo

Devastação, morte, luto – é a imagem de Gaza que emerge, apesar do bloqueio aos jornalistas.
O contraste com o Conselho de Ministros em Ramallah é total – Mercedes reluzentes com vidros escuros, guarda-costas barbeados de fato e auriculares, guardas de botas engraxadas, átrio de pedra e vidro, tudo novo, limpo, bem pago.

São quase três da tarde. Salam Fayyad, primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana, vai dar uma conferência de imprensa com Franco Frattini, ministro italiano dos Estrangeiros. Frattini trouxe ajuda a Gaza, falou com os israelitas e veio a Ramallah dizer que a pré-condição para reconstruir Gaza é haver unidade palestiniana. Fayyad já admitiu que “um novo governo de unidade seria o primeiro passo para a reconciliação nacional”.

O que aconteceu no último ano e meio é que os palestinianos tiveram dois governos sem terem um estado.

Primeiro, em Janeiro de 2006, o Hamas ganhou as legislativas e a Fatah não recuperou do choque – seguiram-se lutas na Fatah e da Fatah com o Hamas. Depois, em Julho de 2007, o Hamas tomou o poder em Gaza, e o presidente Mahmoud Abbas fez um governo alternativo em Ramallah, que passou a ser o reconhecido pela diplomacia internacional.

E esse apoio vê-se no aparato das sedes, do Conselho de Ministros à Mukhata, a presidência, agora ocupada por Abbas.

Quando Arafat aqui estava cercado, a Mukhata era cimento, arame farpado e destroços. Hoje, os muros são de pedra polida. A modesta sepultura de Arafat foi transformada num grande mausoléu, todo em pedra e vidro. Ao lado há uma mesquita também em pedra e vidro, exemplo de depuração contemporânea. E canteiros minimais, quase japoneses.

Dois homens asseguram a guarda-de-honra, uma coroa de flores sueca repousa aos pés do túmulo e o silêncio é total.

Abbas está no Koweit, e quem não o acompanhou saiu daqui ao começo da tarde.

2. A praça

Já a Manara parece igual, embora um dos leões tenha uma pintura nova na cara.

A Manara é uma rotunda, com leões de pedra ao meio e trânsito à volta. Mas é “a” praça de Ramallah, porque daqui é que tudo parte e para aqui é que tudo converge. Durante a guerra houve notícia de manifestações, mas aparentemente não muito grandes.

E ao terceiro dia de cessar fogo em Gaza, a Manara continua entupida de carros e gente pelo meio, vendedores de amendoim, bancas de fruta, lojas de sumos, móveis, roupa, ouro, táxis colectivos para Nablus, Jenin, toda a Cisjordânia, mil anúncios nos prédios, até um café de contrafacção, Star & Bucks – uma cidade viva.

Um dos empreendedores é Adeeb Bakri. Cá está ele, alegre como um gigante de barbas, ao balcão de uma das suas três lojas. Que vende? Tudo, como no chinês, e até fala português por ter vivido 27 anos em Porto Alegre, Brasil. Além das lojas, tem três estações de rádio. Ao todo, 100 empregados.

Mas é ao balcão que continua a desdobrar-se. E que viu Adeeb das manifestações em Ramallah?
“Hum, médio, médio. Houve 10, 12, com duas, três mil pessoas, à sexta talvez cinco mil...” Numa cidade de 250 mil. Bandeiras do Hamas? “Havia, mas a polícia tirou, ia dar briga. Só a bandeira palestiniana era autorizada.”

Bakri esperava mais gente? “Esperava. Acho que o pessoal aqui não entrou porque não quer uma Terceira Intifada. Num só dia de 2002, Israel matou aqui 37 pessoas, e a gente ficou seis meses com bloqueio. Acho que o povo de Ramallah já pagou a sua factura.”

De quem é a culpa desta guerra? “De Israel. Quando Israel tem eleição os no poder sentem que não têm lugares suficientes e inventam sempre uma guerra. Mataram o que mataram e saíram. Para quê? Derrubaram o Hamas? Não. Todo o povo árabe agora apoia o Hamas.”

Aqui em Ramallah também? “Aqui, não, é mais Fatah.”

Podem reconciliar-se, Fatah e Hamas? “Hummm. Acho difícil. Acho que não vai acontecer.”

Do outro lado dos leões, Jamal vende jornais e revistas. Também ele vê há anos tudo o que toma o coração de Ramallah. “No primeiro dia da guerra eram umas mil ou duas pessoas, foram até ao ‘checkpoint’ e começaram a atirar pedras. A polícia veio e prendeu vários. A polícia palestiniana!”
Isso levou muita gente a desistir, crê Jamal.

Em compensação, conta, ontem houve uma manifestação de apoio a Abbas. “Era gente da Fatah, foram trazidos de Nablus, de Jenin, de Tulkarem...”

Jamal, 38 anos, é um socialista. Aos 18 anos foi preso por pertencer à PFLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina). Esteve dois anos numa cadeia de Israel. Até abre os olhos quando lhe perguntam de quem foi a culpa desta guerra. “De Israel, claro. Esta guerra não é contra o Hamas, foi feita contra todos os palestinianos. O Hamas não fez nada de errado. Quando se cerca Gaza durante oito anos temos uma situação assim. É como a Argélia. Quando o partido islâmico ganhou, o que fizeram? Não o reconheceram. Aqui também. E não é justo.”

Por isso, Jamal acha que o presidente Abbas não fez o que devia na guerra, ao criticar o Hamas. “Não se tratava do Hamas e da Fatah. Agora só se fala de Fatah e Hamas e já ninguém pensa em Jerusalém. Há 11 mil prisioneiros nas cadeias de Israel e quem fala deles?”

A última pergunta de Jamal é: “E para onde vai o dinheiro da reconstrução, agora? Para a Autoridade Palestiniana.”

Omar Qourah não tem loja, só anda às compras. É professor na Universidade de Belém e reúne fundos para a Universidade de Birzeit. Deve ser o único palestiniano da praça que votou por Obama. Estudou em Washington, viveu na América, tem dupla nacionalidade. Mas é em Ramallah que está a crescer a sua filha de dois meses.

Aqui, qual foi o sentimento geral durante a guerra? “Fúria. Fúria e frustração por ver na televisão estas atrocidades, o que Israel fez. E por ver a inacção do mundo, dos poderes regionais.” Essas pessoas zangaram-se com Abbas? “Algumas concordaram que não havia nada a fazer, mas muitas zangaram-se por ele não as deixar manifestar mais, e acharam que ele devia ter feito mais declarações.”

Agora, o que Omar espera da liderança palestiniana “é que se erga acima das divisões e que haja uma posição firme pelos direitos palestinianos”. Porque não viu nada vir das negociações. “Os colonatos continuaram, não avançámos uma polegada para acabar com a ocupação.” Em suma? “A Autoridade Palestiniana falhou completamente. A única coisa que conseguiu foi criar um regime que controla os palestinianos, sob o poder dos israelitas. Tornou-se um sub-contratador da ocupação.”

E Omar - este Obamista - não é do Hamas. “Sendo pela não-violência, estou contra as tácticas do Hamas. São imaturos. Reconheço que representam as aspirações palestinianas, mas falharam ao dar uma desculpa a Israel para atacar. E estão a repetir erros da Autoridade Palestiniana: esmagar a oposição.”

(publicado a 21 de Janeiro na edição impressa do Público)

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